Prezados leitores, prosseguimos com a nossa série sobre o perfil da sociedade da antiga Paróquia de Nossa Senhora das Neves, antiga Parahyba, atual cidade de João Pessoa, com base no Livro de Registros de Batizados do ano de 1833. Apesar do foco ser as crianças que já nasciam escravizadas, hoje trataremos das crianças nascidas livres (ingênuas) com foco na orfandade e escolha de tutores. A orfandade de crianças que nasciam escravizadas merece um tópico próprio. Também falaremos da miscigenação da sociedade local da época e a relação com classe e gênero.
A escolha do ano de 1833 não foi aleatória, mas devido ao fato de que os livros anteriores ao ano de 1833 foram perdidos. A Paróquia em questão nasce com a própria fundação da cidade de Filipeia de Nossa Senhora das Neves (atual João Pessoa), no final do século XVI. Conforme já exposto, foram um total de 297 batizados, sendo 296 de crianças e 01 de uma mulher adulta escravizada. Das 296 crianças, 27 nasceram escravizadas.
Uma das curiosidades da pesquisa decorreu da necessidade de verificar a informação de que os padrinhos seriam tutores de órfãos. Quem eram os órfãos para o Direito? Segundo Antônio de Souza Gouveia (1891): “Órphão, no sentido jurídico, é aquelle que não tendo a idade cumprida de 21 annos, ficou sem pai e está sob a administração do Juiz de Órphãos”.
Órfão, portanto, era o menor de 21 anos que não tinha PAI. No caso das crianças expostas, estas conseguiam a maioridade antes, aos 20 anos de idade. Em ambos os casos, de expostos e de ingênuos órfãos, a nomeação de tutores ocorria ao completarem 07 anos, conforme as Ordenações Filipinas, Livro 1º, Título 88, Livro 4º, Título 102 e o Alvará de 31 de Janeiro de 1775, segundo ainda Gouveia.
No caso, segundo as Ordenações Filipinas, pessoas escravizadas não poderiam ser tutoras. Também as mulheres só poderiam ser tutoras se avós ou mãe do órfão, haja vista que órfão no sentido jurídico era quem não tinha pai, genitor (pai falecido ou incógnito). Também não podiam ser nomeados tutores os “acatholicos” no período em análise, segundo Gouveia, porém não encontrei ainda a fonte em que ele se baseia.
Segundo as Ordenações Filipinas, Livro IV, Título CII, não podiam ser tutores:
“que per Direito o póde ser, que não seja menor de vinte e cinco annos, ou sandeu ou prodigo, ou inimigo do orfão, ou pobre ao tempo do fallecimento do defunto, ou scravo, ou Infame, ou Religioso, ou impedido de algum outro impedimento perpetuo”.
Embora as mães e avós pudessem ser tutoras, a mãe perdia essa condição caso viesse a contrair novas núpcias (mesmo em caso de nova viuvez). Mais adiante, em 1859, temos o Aviso nº 312 de 20 de outubro de 1859, a partir de Consulta feita ao então Ministério dos Negócios da Justiça que dizia que deveria se nomear tutor a menor, filho de pai incógnito se a mãe não fosse de “bons costumes”:
“AVISO N.º 312 DE 20 DE OUTUBRO DE 1859.
- Declara que a menor, filha de pai incognito, e que tem mãi viva, he orphã em face das Leis do Paiz.2ª Secção. Ministerio dos Negocios da Justiça. Rio de Janeiro em 20 de Outubro de 1859.
Ilmo. e Exm. Sr. - Tendo essa Presidencia, em officio de 30 de Abril ultimo, consultado á este Ministerio se a menor, filha de pai incognito, e que tem mãi viva, deve ser considerada Orphã em face das nossas Leis, por isso que se deu, no termo de Santarem, o facto de ter o Vigario da vara recusado celebrar, sem o concurso do Juiz de Orphãos, o casamento da menor de dezesete annos Rosa Maria filha natural de Candida Maria da Conceição e de pai desconhecido;
Sua Magestade o Imperador, Conformando-se com a opinião do Consultor interino dos Negocios da Justiça e com o parecer do Conselheiro Procurador da Corôa, Manda declarar a V.Ex. que, negando as nossas Leis expressamente o patrio poder ás mãis, o filho de pai incognito acha-se comprehendido na jurisdicção orphanologica e conseguintemente debaixo da
inspecção directa do Juiz de Orphãos, que póde nomear-lhe tutor ou curador, quando sua mãi não tenha bons costumes, dando-o até á soldada á simile dos outros Orphãos e dos expostos, He claro, pois, que o casamento da menor não poderia ser effectuado sem licença do Juiz, á vista da Ord. Liv. 1º. Tit. 88 xx 19 e 27 e Aviso nº 70 de 18 de Julho de 1846.
Deos Guarde a V. Ex. - João Lustosa da Cunha Paranaguá - Sr. Presidente da Provincia do Pará”
E os padrinhos? Diferente das lendas que ouvimos, padrinho não tinha preferência para ser nomeado tutor em casos de orfandade (morte do pai) dos afilhados. Tal nomeação só poderia ser feita por testamento. Nos demais casos em que não havia previsão testamentária, caberia ao Juiz de Órphãos decidir os pedidos de tutela. Talvez de fato, os padrinhos exercessem algum tipo de tutela informal. Mas não havia nenhum privilégio legal por ser padrinho, a não ser que houvesse designação por testamento feito por pai ou avô.
Na cidade da Parahyba (atual João Pessoa) em 1833 temos as seguintes conclusões com base nos dados coletados, considerando que como as madrinhas não poderiam ser nomeadas tutoras, sua figura era dispensável muitas vezes no momento do batizado. Hoje trataremos somente das crianças que eram livres, chamadas ingênuas, porque o tratamento dado às crianças escravizadas será abordado na continuidade da série:
- Meninos brancos com padrinho e madrinha: 30
- Meninos negros livres com padrinho e madrinha: 2
- Meninos indígenas livres com padrinho e madrinha: 4
- Meninas indígenas livres com padrinho e madrinha: 1
- Meninos pardos livres com padrinho e madrinha: 18
- Meninas brancas com padrinho e madrinha:30
- Meninas negras livres com padrinho e madrinha: 04
- Meninos pardos livres com padrinho e madrinha negros (“crioulos”): 2
- Meninas pardas livres com padrinho e madrinha: 23
Total: 114
Quando resolvemos separar as crianças livres que somente possuíam padrinhos (que seriam em tese aptos para serem nomeados tutores) temos:
- Meninos brancos somente com padrinho: 31
- Meninos indígenas somente com padrinho: 01
- Meninos pardos livres somente com padrinho: 19
- Meninos negros livres somente com padrinho: 09
- Menino “cafuzo” livre somente com padrinho: 01
- Meninas brancas somente com padrinhos: 32
- Meninas indígenas somente com padrinho: 01
- Meninas negras livres somente com padrinho: 04
- Meninas pardas livres somente com padrinho: 12
- Menina “cafuza” livre somente com padrinho: 01
Total: 111
Quanto aos batismos de crianças livres por procuração temos:
- Crianças batizadas com madrinhas por procuração: 12
- Crianças batizadas com padrinhos por procuração: 03
Citemos 01 caso de batismo por procuração de duas meninas gêmeas:
- Roza e Apolinária, em 06.10.1833, filhas naturais de Francisca Xavier dos Santos, pardas. Padrinhos: Sargento-mor Joze Thomas Henriques (Procurador: Padre Antônio da Trindade Antunes Meira) e Donna Maria Izabel do Rozário (Procurador: Francisco Fernandes Lima).
Desse total de 15 crianças, 09 eram crianças pardas livres, 05 eram crianças brancas e 01 era criança negra livre.
Curiosamente consta 01 assentamento sem validade e 01 menino branco sem padrinho ou madrinha. Das meninas brancas expostas (não houve registro de meninos expostos em 1833) temos:
- Meninas expostas (todas brancas) com padrinho e madrinha: 01
- Meninas expostas (todas brancas) somente com padrinho: 02
Conclusão: 265 batizados, sendo aproximadamente 114 crianças somente com padrinhos. Como dito, a figura da madrinha não teria tanta relevância, haja vista que somente as avós e mães podiam ser tutoras. As madrinhas jamais seriam nomeadas tutoras por testamento ou poderiam se candidatar a esta condição de seus afilhados órfãos.
Ademais, as mulheres que não tivessem “boa conduta”, desrespeitassem os “bons costumes” não poderiam ser tutoras de seus filhos. Mas qual era o padrão de comportamento sexual verificado nas mulheres da cidade da Parahyba em 1833?
As mulheres brancas abastadas casavam e eram chamadas de “Donna”. As mulheres brancas pobres viviam em união estável ou tinham a paternidade de seus filhos reconhecida, ainda que filhos naturais, com a exceção de uma mulher branca casada que o marido não reconheceu a paternidade:
“Aos quinze de agosto do anno de mil oitocentos e trinta e três, nesta matriz de Nossa Senhora das Neves, de minha licença o Padre Antônio Lourenço de Almeida, batizou solenemente a párvula Maria, com idade de seis mezes, filha natural de Vicencia Moreira da Ressurreição, cazada, com João Elias, o qual retirou-se da sua companhia. Foi padrinho o Reverendo Vigário desta Matriz. E para constar mandei lançar este assento que no Archivo desta matriz achei por lançar, e o assigno, por estar completamente autorizado.”
O curioso é que o Vigário foi o padrinho, mas não poderia ser nomeado tutor conforme visto nas Ordenações Filipinas.
Já as mulheres negras e pardas fossem livres, forras ou escravizadas, nem todas tinham a paternidade de seus filhos reconhecida. Vejamos dois casos:
- Victorino, batizado em 09.09.1833, aos 02 meses, filho natural da “crioula” Maria, viúva, escrava de Antonio Batista de Carvalho. Padrinhos: José Antônio do Nascimento (pardo livre solteiro) e Anna Barbosa das Neves (parda livre solteira).
- Francisco, batizado em 20.10.1833, aos 46 dias, filho natural de Anna Joaquina da Cruz, parda livre. Padrinho Silvestre Rodrigues de Carvalho (pardo “captivo”).
Mas havia casos de casamentos entre mulheres negras livres (também pardas) com homens escravizados e também homens negros e pardos livres, já exposto nos outros artigos da série.
As mulheres brancas pobres, que eram a maioria, viviam menos uniões interraciais, diferentemente dos homens brancos pobres que se uniam a mulheres negras e pardas livres As famílias brancas casadas não apresentaram uniões interraciais. No caso das mulheres brancas pobres temos os seguintes dados sobre uniões interraciais, observando no entanto que essas uniões não ocorreram com homens negros livres ou escravizados, nem indígenas.
- Menino filho de mãe branca e pai pardo livre: 01
- Menina filha de mãe branca e pai pardo livre: 02
- Menino filho de mãe branca e pai negro livre: 00
- Menina filha de mãe branca e pai negro livre: 00
- Menino filho de mãe branca e pai indígena: 00
- Menina filha de mãe branca e pai indígena: 00
Citemos um dos casos:
- Feliciana, batizada em 21.08.1833, aos 03 meses de idade, filha natural de Izabel Maria Francisca (branca) e Joaquim Mendes Joze dos Santos (pardo), tendo como padrinhos Manoel de Goes (pardo livre) e Eugenia das Neves (preta livre)
Infere-se que as mulheres brancas pobres não tinham tanto acesso a uniões interraciais, bem como as mulheres brancas casadas, haja vista que só se casavam com brancos. Os homens brancos pobres apresentam um outro padrão de relacionamento, podendo se relacionar tanto com mulheres brancas pobres, negras livres e pardas livres pobres. O fato de viverem em concubinato por si só não tirava dessas mulheres o direito de serem tutoras de seus filhos em caso de orfandade, bem como o fato de não terem a paternidade de seus filhos não reconhecida (pai incógnito).
Também se verifica uma maior solidão das mulheres negras e pardas, fossem livres ou não, no exercício da maternidade, haja vista que com exceção de mulheres negras casadas, muitas não tinham a paternidade de seus filhos reconhecida, embora houvesse muitas uniões entre homens brancos pobres e mulheres negras e pardas livres (com a respectiva filiação de seus filhos reconhecida), fazendo a cidade da Parahyba uma cidade miscigenada.
Autora: Laura Berquó. Membro efetiva e integrante das Comissões de Direitos Humanos, Liberdade Religiosa, Constitucional e Direito de Família e Sucessões.
Fontes:
- Livro de Registro de Batizados do ano de 1833 da antiga Paróquia de Nossa Senhora das Neves da antiga cidade da Parahyba (atualmente João Pessoa);
- GOUVEIA, Antônio de Souza. Direito dos Órphãos ou Apontamentos sobre o Processo Orphonológico. Parahyba: Typ. E Lith. a Vapôr Manoel Henriques, 1891
- Ordenações Filipinas (1603), Livro IV, Título CII.
- Aviso nº 312 de 20 de outubro de 1859https://www.ciespi.org.br/site/collections/document/2573