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Terça, 22 Agosto 2023 19:30

Luiz Gama advogou na maior ação coletiva de libertação de escravizados conhecida nas Américas

Da esq. para a dir., no alto, Francisco Amaral e Rachel Gomes de Lima; embaixo, Bruno Rodrigues de Lima e Humberto Adami Da esq. para a dir., no alto, Francisco Amaral e Rachel Gomes de Lima; embaixo, Bruno Rodrigues de Lima e Humberto Adami

A alforria post mortem, oferecida por senhores de escravos em seus testamentos, era constantemente descumprida. Por esta razão, o advogado abolicionista Luiz Gama encabeçou, em 1870, uma ação para libertar pessoas exploradas pelo comendador português Manoel Joaquim Ferreira Netto. O doutor em História do Direito pela Universidade de Frankfurt Bruno Rodrigues de Lima explicou, durante a Homenagem a Luiz Gama nos 180 anos do IAB, promovida pelo Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) nesta terça-feira (22/08), que a “questão Netto”, como ficou conhecida, é considerada a maior ação coletiva de libertação de escravizados das Américas. “É uma causa paradigmática em que ele defende a liberdade de 217 pessoas de uma maneira originalíssima, tanto do ponto de vista processual, quanto do ponto de vista do mérito da discussão da alforria testamentária. No processo, Gama se mostra um jurista de primeira grandeza”, ressaltou o especialista na obra do advogado abolicionista. 

A homenagem, promovida pela Comissão de Filosofia do Direito do IAB, faz parte dos ideais propagados pela entidade, explicou a presidente do grupo, Maria Lucia Gyrão. “É um absurdo que nas faculdades de Direito não se estude Luiz Gama”, afirmou a advogada. Ela também lamentou o apagamento da memória do homenageado: “Gama é um herói da pátria que, infelizmente, o racismo – esse racismo estrutural que vige no Brasil – escondeu”. O evento também teve a participação do vice-presidente da mesma comissão, Francisco Amaral, do presidente da Comissão de Igualdade Racial, Humberto Adami, e da professora de História do Direito na Universidade Candido Mendes (Ucam) Rachel Gomes de Lima.

A vitoriosa disputa na “questão Netto” custou a Luiz Gama um briga judicial em todas as instâncias da Justiça brasileira. “Ele ganha com o juiz municipal e com o juiz de Direito de Santos. Depois disso, sobe ao Tribunal da Relação de São Paulo e ganha também. A causa é finalmente julgada pelo Supremo Tribunal de Justiça, como era chamada à época a Corte Suprema do País, e ele também é vitorioso. É uma causa que ele ganha em diferentes níveis”, disse Bruno Lima, que recebeu o Prêmio Walter Kolb de melhor tese da Universidade de Frankfurt com o estudo sobre a obra de Luiz Gama. Quando se envolveu na “questão Netto”, Luiz Gama já tinha 20 anos de carreira. “Do caso até o fim de sua vida, em agosto de 1882, são mais 12 anos. Isso significa que são 32 anos de vida pública atuando em prol de africanos e seus descendentes no Brasil. Isso é mais do que uma vida”, afirmou o pesquisador. 

Apesar de sua militância e saber jurídico, o palestrante ressaltou que Gama só conseguiu a licença para advogar no final da década de 1860. “Ele consegue essa provisão por seis meses e a luta dele é por prolongar isso até o fim de sua carreira e estender essa provisão para além da Comarca de São Paulo – o que ele consegue. Então, a luta para advogar do Luiz Gama não foi uma coisa fácil ou uma carteira vitalícia, ele teve que conquistá-la no exercício de sua advocacia”, contou. Nesse contexto, Lima sublinhou que resgatar a memória de Luiz Gama é uma necessidade histórica, para que seja compreendida a formação do Brasil: “É necessário que tenhamos consciência da estatura histórica de Luiz Gama e da importância que é o Brasil no sistema global no século XIX, na economia e no capitalismo globais”.

Gama também era um leitor da produção acadêmica produzida pelo IAB, contou o palestrante. Segundo Lima, em 1869 o advogado usou um parecer de Caetano Soares, terceiro presidente do Instituto, para fundamentar a defesa de um homem escravizado. “Luiz Gama e a Casa de Montezuma têm uma relação onde certamente há muito a se investigar, na medida em que Gama era um leitor dos seus jurisconsultos e os jurisconsultos da Casa, por excelência do Direito do Império do Brasil, liam Gama também. Essas conexões precisam ser melhor analisadas no futuro”, defendeu Lima. 

Rachel Gomes de Lima destacou a relevância do debate sobre pesquisas acadêmicas que divulgam o trabalho de Gama: “Ficamos alegres em encontrar todo esse trabalho falado por Bruno. Todos esses textos do Gama continuam sendo encontrados, mas é triste saber que isso ficou tanto tempo esquecido”, disse a professora, que ressaltou a importância do investimento na pesquisa para a recuperação de figuras históricas para o Brasil. “O Gama enxergava o pleno direito à educação como uma das grandes bases de democracia no País”, completou. 

Definindo o homenageado como um herói da pátria, Humberto Adami endossou a necessidade de se aprofundarem os estudos do trabalho de Gama. “Ele foi habeas corpus número um no Tribunal de São Paulo e isso pouco é dito. A ‘questão Netto’ precisa ser mais refletida, mais buscada e mais ensinada”, disse o advogado. O presidente da Comissão de Igualdade Racial do IAB destacou que Gama, ainda que não soubesse disso à época, foi um grande defensor do Estado Democrático de Direito. “As ideias dele hoje permanecem e nos guiam”, finalizou. 

Para além da atuação na libertação de pessoas escravizadas, Francisco Amaral lembrou que Luiz Gama teve importante papel na demonstração do Direito como instrumento de defesa dos valores fundamentais da pessoa humana. “A consequência de todo esse movimento histórico intelectual é mostrar que cabe a nós, cidadãos brasileiros, mais particularmente aos juristas, o dever de lutar pela igualdade de todos os cidadãos, independentemente da sua cor, da sua religião ou da sua nacionalidade. Esse é mais um ponto no colar histórico que Luiz Gama iniciou e que nós, como herdeiros desses valores, devemos continuar”, disse o advogado. 

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