Na nota técnica, Rita Cortez e Marcio Barandier classificam como “despropositada” a afirmação dos autores dos PLs, de que a lei em vigor trata os acusados com “brandura”. Conforme o documento do IAB, “o tráfico de entorpecentes é um dos delitos apenados com maior severidade no ordenamento jurídico brasileiro, com pena mínima de cinco anos de reclusão e máxima de até 15 anos”. Segundo o Instituto, a hipótese de pena menor, prevista no parágrafo 4º do art. 33 da Lei 11.343/2006, “contempla o tráfico de drogas ocasional, praticado de forma amadora pelo agente”.
Para amparar a sua tese, o IAB inseriu na nota técnica dados do estudo denominado Tráfico e sentenças judiciais – Uma análise das justificativas na aplicação de Lei de Drogas no Rio de Janeiro, desenvolvido pela Diretoria de Estudo e Pesquisas de Acesso à Justiça da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro.
Eis a nota técnica na íntegra:
O IAB – Instituto dos Advogados Brasileiros, a mais antiga instituição jurídica das Américas, que há quase dois séculos defende os princípios mais caros da Nação, vem a público expedir a presente nota técnica a respeito do PL 6.315/2013 da Câmara dos Deputados, assim como do PL 53/2015, do Senado Federal. Os dois projetos de lei pretendem a revogação do § 4º do artigo 33 da Lei 11.343/2006, dispositivo que abriga a figura típica do denominado tráfico privilegiado.
As proposições legislativas justificam a sua iniciativa afirmando que o texto em vigor trata com brandura o traficante, estabelecendo acentuada desproporcionalidade entre a resposta penal dada ao tráfico privilegiado com a cominada a outros delitos menos graves, ressaltando ainda os malefícios que a atividade causa à sociedade, tornando-a desmerecedora de qualquer benefício legal.
Além disso, as justificativas apresentadas afiançam que as decisões judiciais, comumente, aplicam a pena mínima aos condenados e ainda reduzem a sanção corporal chegando ao patamar de um ano e oito meses de reclusão, em regime aberto, para um delito equiparado ao hediondo, segundo estabelece a Constituição da República.
O tráfico de entorpecentes é um dos delitos apenados com maior severidade no ordenamento jurídico brasileiro. A pena mínima é de cinco anos de reclusão e a máxima chega até a quinze anos, podendo haver o eventual aumento das penas aplicadas se reconhecida uma ou mais das formas qualificadas do delito, descritas no artigo 40 do mesmo diploma legal.
Essa severidade toma maior vulto quando se percebe a enorme quantidade de verbos reitores do tipo e a indiscutível abertura de seus conceitos, tática legislativa que induz à insegurança jurídica e a elevado subjetivismo judicial, hipóteses que devem ser evitadas pelo legislador.
A causa de diminuição de pena cuja abolição é pretendida pela iniciativa parlamentar é aplicável quando o condenado por tráfico de drogas é primário, ostenta bons antecedentes, não tem o crime como seu meio de vida e nem integra qualquer organização criminosa. Portanto, o dispositivo legal só pode ser acionado pelo magistrado quando cumpridos concomitantemente cada um desses itens. Na verdade, essa hipótese contempla o tráfico de drogas ocasional, praticado de forma amadora pelo agente.
É importante salientar que as propostas de modificação da legislação vigente não foram acompanhadas de estudos estatísticos demonstrando a inconveniência do texto de lei em vigor. Não há qualquer dado empírico que revele a distorção apontada nos dois projetos de lei na aplicação do discutido dispositivo legal, salvo a percepção equivocada do cotidiano forense de seus subscritores.
Ao contrário do que consta nas justificativas apresentadas, se mostra bastante despropositada a compreensão de que a Justiça Criminal trata com brandura aqueles que se veem acusados pelo crime de tráfico de drogas.
A esse respeito, merece ser aqui mencionado o estudo desenvolvido pela Diretoria de Estudo e Pesquisas de Acesso à Justiça da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, denominado “Tráfico e Sentenças Judiciais – Uma Análise das Justificativas na Aplicação de Lei de Drogas no Rio de Janeiro”, coordenada por Carolina Haber.
Segundo constatou o extenso trabalho, em “42,35% dos casos de condenação pelo art. 33 foi reconhecido o benefício do §4º. A justificativa mais comum para afastar seu reconhecimento é o fato do réu integrar organização criminosa (35,84%) ou se dedicar à atividade criminosa (41,55%), ainda que a maioria dos réus não tenha antecedentes ou possua bons antecedentes (84,47%), seja primário ou tecnicamente primário (74,43%)”. (http://www.defensoria.rj.def.br/noticia/detalhes/5589-Maioria-dos-reus-por-trafico-naotem-antecedentes-ou-foi-investigada)
Os resultados específicos desse importante estudo científico demonstram quão falacioso é o argumento de que bastam os bons antecedentes ou a primariedade do agente para que lhe seja concedido o benefício legal. Não é assim. Segundo comprovou a pesquisa, hoje em dia, o reconhecimento do tráfico privilegiado ocorre de maneira bastante criteriosa, somente sendo aplicado quando o infrator comprovadamente não integra organização criminosa e tampouco se dedica à prática de atividades criminosas.
Com efeito, a pretensão legislativa em tela procura, na verdade, abolir o único instrumento contemplado na Lei de Drogas capaz de estabelecer certa gradação penal a condutas diferentes, permitindo que o juiz aplique a lei de modo adequado ao caso concreto, atenuando a resposta penal fixada ao agente quando presentes situações taxativamente previstas na legislação. O modelo hoje em vigor confere ao magistrado a possibilidade de ser duro quando as circunstâncias assim recomendarem ou de ser menos rigoroso na fixação da pena corporal, quando o quadro fático revelar uma situação de traficância amadora ou ocasional.
Além disso, caso a proposição se transforme em lei, a mudança legislativa tornará ainda mais caótico o inviável e abarrotado sistema carcerário brasileiro, o qual se encontra em estado de coisa inconstitucional, como já admitiu o Supremo Tribunal Federal ao apreciar a ADPF nº 347, assim como tolherá enormemente a atividade jurisdicional, impedindo que os magistrados estabeleçam sanções mais adequadas e justas aos casos concretos.
Por fim, ao impor que o traficante ocasional cumpra a pena na companhia de integrantes de facções ou de organizações criminosas, a mudança legislativa vai proporcionar a chance de que o amador se profissionalize no crime, resultado que, certamente, não é o pretendido pelos subscritores dos aludidos projetos de lei. Por estas razões, o Instituto dos Advogados Brasileiros propõe a integral rejeição às iniciativas parlamentares aqui questionadas.
Rio de Janeiro, 16 de outubro de 2019.
Rita Cortez
Presidente nacional do IAB
Marcio Barandier
Presidente da Comissão de Direito Penal