Ação foi feita por ordem de Crivella, que mandou recolher exemplares de 'Vingadores, a cruzada das crianças'. Livro com desenho de beijo gay acabou horas antes de agentes da prefeitura chegarem; nenhum material descumpriu normas na fiscalização, diz Seop.
Por Fernanda Rouvenat, G1 Rio
Fiscais da Secretaria de Ordem Pública (Seop) da Prefeitura do Rio realizaram, na tarde desta sexta-feira (6), uma inspeção na Bienal do Livro para, segundo o órgão, identificar e lacrar livros considerados "impróprios". Por volta das 17h, foi divulgada uma nota para informar que não foi encontrado "material em desacordo às normas do Estatuto da Criança e do Adolescente" (entenda abaixo o que diz o ECA).
A secretaria diz que atendeu a denúncias de frequentadores. Na noite de quinta-feira (5), o prefeito Marcelo Crivella disse que ia mandar recolher exemplares de "Vingadores, a cruzada das crianças", por ter conteúdo "impróprio". A publicação tem a ilustração de um beijo entre dois personagens masculinos.
Livro que prefeito mandou recolher na Bienal do Livro esgotou em poucos minutos
"Se ele [o livro] não estiver seguindo as recomendações de estar lacrado e com a orientação quanto ao conteúdo, nós vamos apreender esse material”, disse, ao chegar para a fiscalização, o coronel Wolney Dias, subsecretário de Operações.
Segundo ele, a Procuradoria do Município afirmou que prefeitura tem poder de polícia para realizar fiscalização e apreensão de material que considerar inadequado.
Horas depois, a Seop enviou a seguinte nota informando que não houve ocorrência de publicações em desacordo com as normas e nenhum material foi recolhido ou lacrado.
"A vistoria da Secretaria Municipal de Ordem Pública realizada nesta sexta-feira, dia 6, nos estandes da Bienal do Livro, não encontrou material em desacordo às normas do Estatuto da Criança e do Adolescente. A equipe - composta por 12 agentes - percorreu os 150 estandes do evento. Não foram encontrados exemplares da publicação "Vingadores: A Cruzada das Crianças", objeto de denúncias de frequentadores da mostra. Na véspera, a Seop notificou a organização do evento a adequar as obras expostas na feira aos artigos 74 a 80 do ECA, que preveem lacre e a devida advertência de classificação indicativa de conteúdo em publicações com cenas impróprias a crianças e adolescentes", diz a nota da Secretaria de Ordem Pública.
Subsecretário de Ordem Pública folheia livro na Bienal em busca de conteúdo 'impróprio' — Foto: Fernanda Rouvenat / G1
Exemplares esgotados em quase 30 minutos
Na manhã desta sexta, todos os exemplares de "Vingadores, a cruzada das crianças" (Salvat) que estavam à venda em diferentes estandes do evento se esgotaram em pouco mais de meia hora.
A organização da feira afirmou que, às 9h39, não havia mais nenhuma unidade em qualquer um dos pontos que vendiam o romance gráfico (do inglês, graphic novel).
A história, de autoria de Allan Heinberg e Jim Cheng, aborda a equipe dos Jovens Vingadores. Dela, fazem parte os personagens Wiccano e Hulkling, que são namorados.
Crivella mandou recolher livro dos Vingadores que traz beijo entre homens — Foto: Reprodução/Redes Sociais
Em nota, a Prefeitura informou que estava cumprindo o Estatuto da Infância e do Adolescente e ameaçou cassar a licença da Bienal (veja mais abaixo). "Livros assim precisam estar em um plástico preto, lacrado, avisando o conteúdo", disse o prefeito em vídeo nas redes sociais.
De acordo com o inciso quatro, artigo 5º, da Constituição Federal, "é livre a manifestação do pensamento". E segundo o inciso 9, do mesmo artigo, é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.
"A prefeitura não tem o poder de busca e apreensão. Este poder é, estritamente, do Judiciário. Desde 2011, a família homoafetiva é reconhecida. Nós sabemos disso, foi amplamente divulgado. Em 2019, a homofobia tornou-se crime, equiparado ao racismo”, afirmou Silvana do Monte Moreira, presidente da Comissão dos Direitos da Criança e do Adolescente da OAB-RJ.
A Bienal informou que os livros já estavam lacrados, como todos os livros de edição especial que vêm embalados em plástico transparente. Eles não ficam abertos para que o público possa "folhear".
A direção da Bienal também informou que não iria retirar os livros e que daria voz "a todos os públicos, sem distinção, como uma democracia deve ser".
"Este é um festival plural, onde todos são bem-vindos e estão representados. Inclusive, no próximo fim de semana, a Bienal do Livro terá três painéis para debater a literatura Trans e LGBTQA+. A direção do festival entende que, caso um visitante adquira uma obra que não o agrade, ele tem todo o direito de solicitar a troca do produto, como prevê o Código de Defesa do Consumidor", diz o comunicado.
Crivella manda recolher da Bienal livro dos Vingadores — Foto: Reprodução/Redes Sociais
O que diz a prefeitura
A Prefeitura do Rio citou o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) para justificar "a adequação das obras expostas" – na quinta, Crivella falou em recolhê-las.
"A legislação determina que publicações com cenas impróprias a crianças e adolescentes sejam comercializadas com lacre (embaladas em plástico ou material semelhante), com a devida advertência de classificação indicativa de seu conteúdo", diz a nota.
"No caso em questão, a Prefeitura entendeu inadequado, de acordo com o ECA, que uma obra de super-heróis apresente e ilustre o tema do homossexualismo a adolescentes e crianças, inclusive menores de 10 anos, sem que se avise antes qual seja o seu conteúdo", emendou.
A prefeitura afirma que a editora, a Salvat, sabia da obrigação legal. "Tanto que a obra estava lacrada. Não havia, porém, uma advertência neste sentido, para que as pessoas fizessem sua livre opção de consumir obra artística de super-heróis retratados de forma diversa da esperada", alegou.
A nota relata reclamação de frequentadores da feira, "que têm direito à livre opinião e opção quanto ao conteúdo de leitura de filhos e adolescentes, pessoas em formação".
O texto rechaça ter havido "qualquer ato de trans ou homofobia ou qualquer tipo de censura à abordagem feita livremente pelo autor".
"Em caso de descumprimento, o material sem o aviso será apreendido e o evento poderá ter sua licença de funcionamento cassada", ameaça.
Descrição dos personagens de 'Vingadores, a cruzada das crianças', publicação no centro de polêmica na Bienal do Livro no Rio — Foto: Fernanda Rouvenat/ G1
O que diz o Estatuto da Criança e do Adolescente:
"As revistas e publicações contendo material impróprio ou inadequado a crianças e adolescentes deverão ser comercializadas em embalagem lacrada, com a advertência de seu conteúdo.
Parágrafo único. As editoras cuidarão para que as capas que contenham mensagens pornográficas ou obscenas sejam protegidas com embalagem opaca.
ART. 79. As revistas e publicações destinadas ao público infanto-juvenil não poderão conter ilustrações, fotografias, legendas, crônicas ou anúncios de bebidas alcoólicas, tabaco, armas e munições, e deverão respeitar os valores éticos e sociais da pessoa e da família."
O que diz a Bienal Internacional do Livro
"A Bienal Internacional do Livro Rio, consagrada como o maior evento literário do país, dá voz a todos os públicos, sem distinção, como uma democracia deve ser. Este é um festival plural, onde todos são bem-vindos e estão representados. Inclusive, no próximo fim de semana, a Bienal do Livro terá três painéis para debater a literatura Trans e LGBTQA+.
A direção do festival entende que, caso um visitante adquira uma obra que não o agrade, ele tem todo o direito de solicitar a troca do produto, como prevê o Código de Defesa do Consumidor."
O que diz a OAB e IAB
"OAB/RJ e IAB repudiam tentativa de recolhimento de livro na Bienal
A Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Estado do Rio de Janeiro, e o Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) vêm manifestar seu repúdio ao ato arbitrário praticado pela Prefeitura do Rio de Janeiro na Bienal do Livro na tarde desta sexta, dia 6. A tentativa de recolhimento da obra em quadrinhos “Vingadores: A cruzada das crianças”, sob o argumento de que violaria o Estatuto da Criança e do Adolescente, não se justifica, já que inexiste na capa da publicação qualquer reprodução de ato obsceno, nudez ou pornografia. O conteúdo da obra tampouco infringe as normas vigentes, visto que as famílias homoafetivas são reconhecidas legalmente no Brasil desde 2011, estando alinhadas com as garantias constitucionais do cidadão.
A OAB/RJ tem em seus pilares a defesa da liberdade de expressão, de pensamento e do pleno exercício da informação, especialmente traduzido na atividade da livre veiculação de livros, revistas, jornais e de todo meio de manifestação escrita legítima, conforme asseguram os direitos e garantias fundamentais esculpidos no artigo 5º, IV, VIII, IX, XIII e XIV, combinado com o artigo 220 e seus parágrafos, da Constituição Federal.
Vale salientar, ainda, que não cabe ao Poder Executivo municipal, e, sim, à Justiça da Infância e da Juventude, a ação contra eventuais desrespeitos ao Estatuto da Criança e do Adolescente.
A postura da Prefeitura do Rio, portanto, revela-se como ato de força e censura, que deve ser repelido. Vigilante à efetiva legalidade dos atos das autoridades públicas, a OAB/RJ reafirma seu papel na preservação do Estado democrático de Direito e, caso necessário, recorrerá às medidas cabíveis com vista à defesa da sociedade fluminense."
O que diz a Defensoria Pública
"A Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro vem a público manifestar seu apoio à Bienal do Livro e informa que ingressará com pedido de amicus curiae (parte interessada) no mandado de segurança preventivo impetrado pelos organizadores do evento junto ao Tribunal de Justiça. É inadmissível que, em pleno estado democrático de direito, obras literárias sejam censuradas e atacadas. A Defensoria Pública reafirma seu compromisso com a defesa da democracia e da liberdade de expressão."
Informações da obra, que está no centro de uma polêmica com o prefeito do Rio, Marcelo Crivella — Foto: Fernanda Rouvenat/ G1