Por entender que não cabe aos militares interferir nas pautas do Judiciário, entidades da advocacia e do Ministério Público emitiram notas de repúdio às declarações do comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, feitas nesta terça-feira (3).
Na véspera do julgamento do habeas corpus impetrado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Supremo Tribunal Federal, o general afirmou, em rede social, que repudia “a impunidade”, e que o Exército está ainda “atento às suas missões institucionais”.
“Em uma democracia e em um estado de direito não cabe às organizações militares ou a seus integrantes –-salvo como cidadãos na sua liberdade de expressão-– tentar interferir na agenda política do país ou nas pautas do Poder Judiciário”, afirma nota da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR).
“O Brasil é uma democracia há mais de 30 anos, assim tem de prosseguir, e vai prosseguir”, afirma a nota assinada pelo presidente da ANPR, procurador regional da República José Robalinho Cavalcanti.
“Não carecemos da tutela militar para que o respeito às leis, à Constituição Federal, à paz social e à democracia se dê de forma plena”, afirma nota divulgada pelo Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), assinada por Técio Lins e Silva, presidente.
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Eis a íntegra da Nota Pública da ANPR:
A Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) vê com preocupação mensagens públicas de oficiais das Forças Armadas brasileiras que podem ser mal compreendidas e que, inadvertidamente, podem instigar manifestações de movimentos políticos de parcela da população. O Brasil é uma democracia há mais de 30 anos, assim tem de prosseguir, e vai prosseguir. Em Estados democráticos de direito, o poder civil dirige os destinos da nação e deve ser livremente exercido, sem interferências, insinuações ou, o que pareça, sequer sugestões impertinentes.
A Constituição Federal garante ao Ministério Público a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Os membros do Ministério Público lutam diuturnamente contra o crime e a impunidade. E assim o fazem com absoluto respeito às leis do país e às instituições republicanas. Em uma democracia, todas as instituições devem respeitar os seus papéis e as funções que a Constituição lhes reserva. Mesmo quando o sistema de Justiça se questiona, por meio dos órgãos do próprio Judiciário, do Ministério Público e da Advocacia, o faz sabendo que sua pedra angular são os valores democráticos e deles não nos afastaremos, ainda que existam divergências que devam ser superadas pelo sentido de justiça.
Em uma democracia e em um estado de direito não cabe às organizações militares ou a seus integrantes – salvo como cidadãos na sua liberdade de expressão – tentar interferir na agenda política do país ou nas pautas do Poder Judiciário. Ou mesmo parecer que buscam interferir. As respeitáveis instituições militares nacionais respondem ao presidente da República e destinam-se à defesa da pátria e à garantia dos poderes constitucionais, inclusive do Poder Judiciário. Dúvida alguma existe acerca disso.
A ANPR valoriza e respeita a autonomia dos nossos tribunais, especialmente a do Supremo Tribunal Federal (STF), e entende ser essencial que todos velemos para que as magistraturas brasileiras tenham liberdade de exercerem suas funções constitucionais e, em particular, de julgar quaisquer causas e decidi-las de acordo com as leis do país e suas consciências.
A Associação confia que as Forças Armadas, que merecem o apreço de todos os brasileiros — inclusive pelo respeito à democracia nos últimos 30 anos —, continuarão contribuindo para a estabilidade do Estado democrático de direito, nos estritos limites estabelecidos pela Constituição de 1988. A democracia é um valor inegociável para a cidadania, o desenvolvimento nacional e as liberdades do povo, e sua manutenção é essencial para que o Brasil continue a merecer o respeito de seus pares na comunidade internacional. Recordemos a célebre frase de Lincoln: “The ballot is stronger than the bullet” (o voto é mais poderoso que um projétil).
A verdadeira força de um País está no respeito às leis, às liberdades públicas, à vontade das maiorias e aos direitos das minorias.
José Robalinho Cavalcanti
Procurador Regional da República
Presidente da ANPR
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Eis a íntegra da Nota de Repúdio do IAB:
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O Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) repudia veementemente a manifestação do general comandante do Exército Brasileiro, lançada em tom marcial e imperativo, afirmando que a Força sob seu comando “julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais”.
Emitida às vésperas de um julgamento de grande relevância nacional pelo Supremo Tribunal Federal e assemelhando-se a uma “ordem do dia” dos plúmbeos tempos ditatoriais e, mais ainda, provinda de um oficial-general com voz de comando sobre toda a tropa, a nota revela espúrias articulações na caserna visando a interferir no teatro político-judiciário, caso a decisão que venha a ser tomada pela Suprema Corte desatenda o que o militar entende como “anseio de todos os cidadãos de bem” e “repúdio à impunidade”.
A democracia brasileira, arduamente reconquistada, está, como todas pelo mundo afora, em constante construção. Mas suas instituições políticas e judiciárias, como o Congresso Nacional e os Tribunais do País, são fortes e estão plenamente aptas a superar quaisquer crises já instaladas e as que venham a se instalar no futuro, bem como para julgar os conflitos jurídicos presentes e vindouros.
Nós, brasileiros, não carecemos da tutela militar para que o respeito às leis, à Constituição Federal, à paz social e à democracia se dê de forma plena. Somos um País livre, compomos um povo atento e não tememos possíveis conflitos ideológicos, pois dispomos de maturidade política, adquirida paulatinamente desde o ocaso da ditadura, para resolvê-los.
Dispensamos, assim, as Forças Armadas dessa tarefa, para que elas deem cobro de sua primordial missão institucional, que é a de proteger a Nação de inimigos externos. Entre nós não temos inimigos, quando muito somos adversários, sempre dispostos ao entendimento e ao consenso e sempre pela via democrática.
O IAB, reitera, como faz há quase 200 anos, que o poder político no Brasil deve ser exercido por civis, cabendo aos militares apenas cumprir as ordens do mandatário da Nação e unicamente quando instadas para tal.
Rio de Janeiro, 4 de abril de 2018.
Técio Lins e Silva
Presidente nacional do Instituto dos Advogados Brasileiros
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Sob o título “O Brasil e a Democracia sob ataque“, um grupo de 150 juristas, advogados e profissionais do Direito (*) divulgou a seguinte manifestação:
As recentes manifestações que evocam atos de força configuram clara intimidação sobre um Poder de Estado, o Supremo Tribunal Federal. Algo que não acontecia desde o fim da ditadura militar.
É urgente que os Poderes da República repudiem esse tipo de pressão.
As falas veiculadas nas últimas horas por oficiais das forças armadas dificultam um julgamento isento e colocam em xeque a democracia. Não são pessoas que estão em jogo. É a República. E a democracia.
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