Comissão do TJ julga “regular” caso de advogada negra algemada durante o trabalho
Foto: Agência Brasil.
“Se for preciso, vou recorrer até aos órgãos internacionais, como a ONU. Tive o direito da pessoa humana ferido naquela audiência”.
Ao apreciar o caso da advogada negra Valéria Lúcia dos Santos, o desembargador Joaquim Domingos de Almeida Neto, presidente da Comissão Judiciária dos Juizados Especiais (Cojes) do Tribunal de Justiça (TJ), considerou “regular” a atitude da juíza leiga e dos policiais que algemaram a Dra. Santos e a arrastaram para fora da sala quando ela defendia uma cliente numa audiência.
O caso ocorreu no dia 10 de setembro, no Fórum de Duque de Caxias, Rio de Janeiro e ganhou repercussão após viralizar nas redes sociais. Em dois vídeos, gravados em celulares de pessoas que testemunharam o episódio, é possível ver a juíza encerrando a audiência sem apreciar o pedido da advogada. Inconformada com o cerceamento da defesa de sua cliente, Santos se recusa a sair da sala. Diante da postura da Dra, que diz que só sairia com a presença de um representante da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a juíza leiga Ethel Tavares de Vasconcelos dá a ordem aos policiais para que a retirem do recinto. Ela é então algemada e arrastada para fora.
No documento em que aprecia o caso, porém, Joaquim afirmou que essa versão dos fatos está “em colisão” com outras provas juntadas ao processo. Especificamente sobre o conteúdo do vídeo em que Santos aparece algemada e no chão, o desembargador reconhece se tratar de uma “imagem forte”, mas acredita que “não se pode emprestar maior significado [ao vídeo] do que o que realmente revê” e decide que essa versão dos fatos “deve ser descartada”.
Joaquim disse que, além dos vídeos, levou em consideração depoimento de pessoas que presenciaram o ocorrido. Em sua decisão final, conclui que a Dra. Santos “se jogou no chão” e começou a se debater, sendo “momentaneamente” algemada para a sua própria segurança. A juíza leiga Ethel Tavares de Vasconcelos, foi inocentada da prática de qualquer abuso (o juiz leigo é um advogado que preside a audiência em alguns juizados especiais para auxiliar a Justiça. Mas a decisão final é de um juiz togado).
Em depoimento à Folha de São Paulo, Santos confirmou que foi derrubada e arrastada pelos policiais. “Quando chegou do lado de fora da sala, me deram uma rasteira e eu caí sentada. Depois colocaram as algemas”.
Com a repercussão do caso, a audiência em que a Dra foi algemada foi anulada. A decisão final, proferida por um juiz togado, foi favorável a cliente de Santos.
“Estou muito tranquila sobre o que aconteceu naquele dia. Vamos aguardar. Se for preciso, vou recorrer até aos órgãos internacionais, como a ONU. Tive o direito da pessoa humana ferido naquela audiência”, declarou a Dra Santos ao portal de notícias UOL. “A intenção é jamais permitir que isso aconteça de novo”.
Em nota, a Dra respondeu ainda que “o TJRJ é um órgão corporativista, tipo a Casa Grande. Nunca teremos direitos ou garantias perante eles, infelizmente o Brasil é assim, o racismo é velado e institucionalizado”.
OAB critica a decisão
“Mesmo que a Valéria estivesse errada, e eu acho que ela está certa, não justifica. Estão tentando desviar do fato: uma mulher, advogada, negra, foi algemada dentro da sala de audiência”. Afirmou o presidente da Comissão Estadual de Defesa de Prerrogativas da OAB, Luciano Bandeira. Ele esclareceu que nenhuma advogada ou advogado poderia ser algemada e que seria preciso comunicar o ato a um delegado da OAB.
“Nós não sabemos quem são as testemunhas, sequer estávamos presentes quando a juíza leiga e testemunhas apresentaram suas versões”, disse Luciano. Para ele, a conclusão do desembargador Joaquim e da Comissão do TJ é resultado de um procedimento interno e administrativo do tribunal, sem valor judicial. Em nota, a entidade disse que a conclusão da comissão causa “espécie e estupefação”.
“Não tem isso de inocentar. Pode ser que administrativamente o tribunal não vá fazer nada, mas por parte da OAB isso continuará sendo apurado”, garantiu Luciano, afirmando que a OAB vai prosseguir com a investigação interna no seu Tribunal de Ética e Disciplina e já entrou com representação contra os policiais na corregedoria da corporação. “Se ficar caracterizado que houve uma infração da juíza leiga, vamos entrar com representação no TJ-RJ, no CNJ, além de processos civis e criminais na Justiça”.
À época do ocorrido, a OAB do Rio declarou que “Nada justifica o tratamento dado à colega, que denota somente a crescente criminalização de nossa classe”e que “nem na época da ditadura se prendia, algemava e jogava no chão um advogado dentro da sala de audiência. É um absoluto desrespeito ao Estado democrático de direito e à advocacia. Isso causa muita preocupação”.
A presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros, por sua vez, declarou que “o inexplicável uso ilegal de algemas confirma a tendência da criminalização da classe, com intensificação de atitudes de desvalorização e desqualificação dos advogados e advogadas”. Além da violação das prerrogativas dos advogados, “o ato sugere também discriminação de gênero e raça”, apontou.
O que está errado na atitude da juíza de acordo com a lei:
As prerrogativas dos advogados estão previstas pela lei n° 8.906/94 em seus artigos 6º e 7º. A lei garante a esse profissional o direito de exercer a defesa plena de seus clientes, com independência e autonomia, sem temor de represálias de juízes, de representantes do Ministério Público ou de qualquer autoridade que possa tentar constrangê-lo ou diminuir o seu papel enquanto defensor das liberdades.
O uso de algemas, como foi feito com a Dra Santos, conforme súmula vinculante n. 11 do STF, só seria lícito em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia. Sendo que advogados e advogadas não podem ser presos(as) no exercício da profissão, salvo em caso de crime inafiançável (art. 7º., par. 3º., da Lei 8.906/94).
Além disso, nenhuma prisão de advogado ou advogada durante o exercício da profissão pode ser feita sem a presença de representante da OAB (art. 7º., IV, da lei 8.906/94).
Casos semelhantes
Dois anos antes, o advogado negro Flávio César Damasco foi hostilizado, algemado e levado a uma delegacia ao tentar entrar no Tribunal Regional do Trabalho, TRT da 2.ª Região, no centro de São Paulo. Aguardava o elevador quando foi abordado por segurança aos gritos que disse que não poderia usar o elevador privativo.
No outro elevador, foi questionado se era advogado e inquirido a entregar sua carteira da Ordem dos Advogados. Por achar o tratamento hostil dentro de um fórum cujo acesso é público à qualquer cidadão, falou ao vigia que só se identificaria se ele pedisse com educação. Mais seguranças foram chamados e ele foi algemado e levado até uma delegacia de polícia.