Colunista da Revista Cult e autora do livro "Como conversar com um fascista", Márcia Tiburi defendeu que "a melhor forma de combater a cultura do estupro é desconstruí-la com a realização de debates que sirvam para a construção de uma cultura mais igualitária". A filósofa tratou também da "política do estupro". Segundo ela, "o Poder Legislativo pratica a política do estupro, que é a institucionalização da cultura do estupro, ao apresentar projetos de leis bizarros, como o que cria o 'bolsa estupro', que visam à anulação da discussão sobre gênero".
Na abertura da sua exposição, o juiz Rubens Casara anunciou que trataria do tema "pela lente dos direitos humanos, que são hoje a gramática hegemônica da dignidade da pessoa humana". Segundo o magistrado, "a simples declaração dos direitos humanos pelo Estado não é garantia de que dignidade da pessoa humana irá sair do papel e, além disso, leva a um imobilismo social extremamente perigoso que não os torna efetivos". Na sua argumentação, o juiz citou o filósofo alemão Ernst Bloch, para quem "a utopia foi substituída pelo discurso dos direitos".
Ao relacionar a cultura do estupro com a cultura dos direitos fundamentais, Rubens Casara afirmou que "um país como o Brasil, com uma sociedade lançada numa tradição autoritária, que tem a marca da cultura do estupro, evidentemente não se encontra dentro do marco do estado democrático de direito". De acordo com o magistrado, "cultura do estupro é um complexo de crenças, práticas, conhecimento, preconceitos e hábitos que se voltam para a coisificação sexual, que atinge principalmente a mulher, e a violação da liberdade das pessoas".
Segundo Rubens Casara, a cultura do estupro se mantém no Brasil em pleno século XXI por estar inserida numa "tradição que privilegia o uso da força, a ausência de reflexão e a admissão de que uma pessoa pode ser usada e descartada do ponto de vista sexual". Ele incluiu no mesmo contexto "os comentários, crenças e ações, conscientes ou não, que tratam as pessoas vitimadas como se fossem objetos". Rubens Casara disse que, como toda forma de violência simbólica, a cultura do estupro não é percebida por quem dela faz parte. "Dizer que a maioria da população repudia o estupro não significa dizer que a cultura do estupro não exista", afirmou.
'Usamos as pessoas e amamos as coisas'
Na crítica do que chamou de "instrumentalização das pessoas", o juiz recorreu ao pensamento do psicanalista Joel Birman, segundo o qual "as pessoas foram feitas para serem amadas e as coisas, para serem usadas, mas hoje nós usamos as pessoas e amamos as coisas". Para o magistrado, "essa é a mesma lógica da cultura do estupro". Rubens Casa finalizou a sua palestra afirmando: "Mais do que procurar uma resposta no campo do direito penal para a cultura do estupro, o desafio é resgatar os valores que fizeram parte de algo que um dia chamamos de civilização".
Leila Bittencourt, da Comissão de Direitos Humanos e membro do IAB há 28 anos, "num gesto de extrema coragem", conforme ressaltou Márcia Dinis, pediu a palavra e, da tribuna do plenário, deu um depoimento sobre a sua experiência como vítima de um estupro. "Inicialmente, quero dizer que, pela primeira vez, vejo esta Casa se abrir para um debate moderno sobre temas de grande relevância", disse Leila Bittencourt, para quem "aumento de pena e aprisionamento nunca irão estancar esse coisa tenebrosa que é o estupro".
"Também pela primeira vez falarei do que aconteceu comigo", disse Leila, no início do seu relato. "Eu era muito jovem, tinha 18 anos. Fui agarrada na rua por um sujeito que me seguiu e, armado, me colocou à força dentro de um carro e me levou para um lugar ermo. Eu era virgem, namorava um rapaz de uma das famílias mais tradicionais brasileiras, neto de ex-ministro da Justiça. Se o caso tive se tornado público, teria alcançado grande repercussão", contou Leila.
"Eu gritava, chorava muito e perguntava se ele tinha irmã, mas a reação era um discurso raivoso, como se todas as mulheres tivessem que aceitar ser objeto. Consegui me desvencilhar, sair do carro e correr, mas ele me alcançou e me levou de novo para dentro do veículo, me arrastando pelos cabelos", relatou.
A advogada disse que, depois, ao ligar para o namorado, ele, preocupado apenas com a sua posição social, não foi encontrá-la, alegando que o criminoso usufruíra da virgindade que para ele estava reservada,"ignorando a dor física de uma violência que quase me matou e a dor inenarrável, muito maior, que senti na alma", contou Leila.
"Hoje, mais de 40 anos depois do que aconteceu, com a maturidade que tenho, não posso mais me constranger com isso, que em nada me diminui, e não contribuir para o combate à cultura do estupro", finalizou.
OS MEMBROS DO IAB ATUAM EM DEFESA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO. FILIE-SE!