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Sábado, 23 Setembro 2023 12:05

Criminalista identifica que homicídio privilegiado é usado para justificar feminicídios no lugar da tese de legítima defesa da honra

Da esq. para a dir., Ana Arruti, Isabelle Gibson, Marcia Dinis, Flávia Nascimento, Joyce Trindade e Luiza Bruxellas Da esq. para a dir., Ana Arruti, Isabelle Gibson, Marcia Dinis, Flávia Nascimento, Joyce Trindade e Luiza Bruxellas

A ideia de que o machismo estrutural não alcança apenas a legislação, mas também está presente no sistema de justiça criminal levou a advogada Isabelle Gibson a estudar, durante seu mestrado, 31 casos de feminicídios que ocorreram entre 2015 e 2017 na cidade do Rio de Janeiro. O resultado desse trabalho está publicado no livro Histórias interrompidas: a necessidade de incorporação da perspectiva de gênero nos processos de feminicídios nos tribunais do júri, lançado no Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) nesta sexta-feira (22/9). Apesar da tese da legítima defesa da honra ter caído em desuso – e ter sido declarada inconstitucional neste ano –, a criminalista identificou que a tentativa de justificar feminicídios encontrou eco em outro tipo penal: “Os argumentos discriminatórios que eram articulados como legítima defesa da honra migraram para serem utilizados no homicídio privilegiado, como uma causa de diminuição da pena do réu. Muitas vezes no plenário é sustentado que houve violenta emoção logo após uma injusta provocação da vítima”. 

A injusta provocação, segundo Gibson, tem sido usada para fatos como o término de um relacionamento e a negação da vítima em reatar com o agressor, por exemplo. “Minha conclusão é que essa incorporação de uma perspectiva de gênero a partir das leis e diretrizes nacionais do feminicídio não foi feita. Ela ficou prejudicada em vários processos e não tivemos uma grande modificação da atuação do sistema de justiça criminal”, disse a autora. Ela ressaltou que a melhora do quadro não se dá pela criação de novos tipos penais ou de penas mais duras: “O que realmente precisamos é pensar políticas públicas para o enfrentamento do feminicídio como a forma mais extrema de violência contra a mulher”. O 1º vice-presidente do IAB, Carlos Eduardo Machado, que é especialista na área criminal, endossou a visão da autora durante a abertura do lançamento: “Embora a legislação penal tenha tentado intervir e reduzir o problema, vemos que, como de costume, não é através do Direito Penal, com o agravamento da pena, que vamos conseguir essa redução. Continuamos vendo ainda números escandalosos e uma prática insistente de feminicídios”.


 Carlos Eduardo Machado

Também participaram do webinar a diretora de Biblioteca do Instituto, Marcia Dinis, a secretária municipal de Políticas e Promoção da Mulher do Rio de Janeiro, Joyce Trindade, a coordenadora de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, Flávia Nascimento, a membro da Comissão de Criminologia do IAB Ana Arruti, a membro da Comissão de Defesa, Assistência e Prerrogativas da OAB/RJ Luiza Bruxellas e a membro da Comissão de Direito Penal do IAB Victória de Sulocki. O interesse pelo estudo do tema refletido no trabalho de Gibson se concretizou em uma pesquisa consistente, elogiou Marcia Dinis. “Ela tem um futuro promissor pela frente. É impressionante que a dissertação dela de mestrado tenha surtido em um livro como esse, com profundidade de pesquisa e abordando aspectos super interessantes a respeito da perspectiva feminina, especialmente no tribunal do júri”, disse a diretora. 

Ao abordar a evolução legislativa voltada ao tema da violência contra a mulher, Gibson também analisa os trabalhos da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre a Violência contra a Mulher do Congresso Nacional, que apresentou seu relatório final em 2013. Ana Arruti citou que a CPMI constatou um cenário de insuficiência de serviços e garantias que deveriam ser oferecidos pelo poder público, como, por exemplo, uma distribuição territorial desigual de serviços e o sucateamento de órgãos estatais. “No final da CPMI, foram feitas 14 propostas legislativas e a única reforma penal foi a criação da qualificadora do feminicídio. Mesmo diante de todas as constatações da Comissão que dizem respeito a políticas públicas de capacitação, acolhimento, atenção médica, psicossocial etc, optamos  por dar enfoque ao Direito Penal para resolver o problema”, criticou a advogada.

Na visão de Luiza Bruxellas, o combate a esse tipo de crime não deve privilegiar o olhar punitivista. “O Direito Penal é ultima ratio por ene motivos, mas no caso do feminicídio tem que ser ultima ratio, porque ele já não adianta mais, a mulher já está morta”, afirmou a advogada, que definiu o investimento em políticas públicas como o mecanismo mais eficaz para a luta contra a violência de gênero. Flávia Nascimento ressaltou que o feminicídio é um crime evitável. “Temos a Lei Maria da Penha, que garante uma série de medidas preventivas de proteção à mulher e temos que focar nisso. Infelizmente, houve uma captura da Lei Maria da Penha e do seu viés punitivo. Talvez por isso não damos conta de garantir e assegurar a proteção integral da mulher em situação de violência e nos deparamos com essa violência fatal”, completou a defensora. 

 Victória de Sulocki

Joyce Trindade sublinhou que o tema reflete outros preconceitos da sociedade, além do machismo propriamente dito. Segundo a secretária municipal, o corpo alvo do crime em debate é majoritariamente negro: “É claro que o feminicídio é democrático no sentido de que todas as classes, raças e territórios passam por essa tragédia também. Entretanto, a maioria tem um perfil, é um corpo negro, jovem e tem uma questão territorial. Periferias muitas das vezes são permeadas por essa violência. Tem também a questão da classe econômica, aquelas mulheres que não tem caminhos para saída, e tem a questão da maternidade. Percebemos que as mulheres vítimas de feminicídios são em sua maioria mulheres mães muito jovens”. Um dos frutos para o racismo ser tão presente nos casos analisados é a herança colonial e capitalista, avaliou Victória de Sulocki. “A prática escravocrata é casada com o patrimonialismo e é a ideia de que a mulher é um bem para aquele homem. Há a reprodução disso mesmo entre a população mais vulnerável”. 

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