AUTOMAÇÃO DA ADVOCACIA
Lamenta-se que inovação seja utilizada para finalidades desvinculadas dos princípios que regem o exercício da advocacia
Quem já teve a honra de advogar sabe que um dos momentos cruciais do exercício dessa nobre profissão ocorre logo no início, quando da primeira consulta, em que o advogado dedica sua atenção ao cliente, recepciona seus anseios, presta-lhe apoio e, só então, sugere medidas jurídicas recomendáveis para a solução do incômodo que motivou o encontro.
Assemelhada à médica, a consulta do advogado é o momento de diagnóstico. Não raro, o cliente busca muito mais do que uma providência jurídica, mas um ombro amigo, uma palavra que lhe traga conforto e lhe dê esperança de solução para o seu problema.
É nesse momento que o advogado tem de cumprir um de seus mais importantes deveres, prescrito no artigo 8º do Código de Ética e Disciplina da OAB, de informar o cliente, de forma clara e inequívoca, quanto a eventuais riscos da sua pretensão, e das consequências que poderão advir da demanda.
Somos humanos e – como tais – temos desejos desvinculados da racionalidade, que por vezes nos impulsionam para caminhos de vingança, de ódio, que no longo prazo podem acarretar resultados catastróficos, intensificando nossas desilusões e amarguras. Nesse contexto, o advogado tem a missão de administrar as vontades de seus clientes e saber quando freá-las, ao identificar que trarão nada senão prejuízos. Essa responsabilidade é exatamente o que torna o exercício da advocacia incompatível com procedimentos de mercantilização, como descrito no artigo 5º do mencionado Código de Ética e Disciplina da OAB.
Diferente de outros sistemas, no Brasil o advogado é proibido de explorar o lado obscuro da existência humana e tirar proveito do desconforto e dor de seus clientes, por meio do uso de tais elementos como combustíveis para a propositura de demandas que visam unicamente a vingança individual, e não a pacificação social (esse sim, fim máximo da Jurisdição).
Nesse contexto, no auge da economia digital, uma série de ferramentas tecnológicas se apresentam e passam a ser empregadas pelos advogados, no dia a dia, em incremento à prestação dos tradicionais serviços jurídicos. Por óbvio, a área jurídica não é imune (e nem deveria ser) aos avanços tecnológicos e, assim, é bastante positiva a utilização da tecnologia pelos advogados, pois resulta em melhora de produtividade, criatividade e eficiência, além de potencializar o networking e a disseminação de conhecimentos.
O advogado da era digital tem o privilégio de se valer de ferramentas tecnológicas para o cumprimento de tarefas rotineiras e repetitivas, que não exigem grande conhecimento técnico, para dedicar-se às questões estratégicas, que requerem níveis de cognição ainda não atingidos pelas máquinas.
No que tange à ética profissional, ressalta-se que o uso de ferramentas tecnológicas pelo advogado é plenamente possível, como já analisado em julgamento da 1ª Turma de Ética Profissional do Tribunal de Ética e Disciplina da seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil1, em que adequadamente se avaliou que “as inovações tecnológicas com vistas a auxiliar o advogado no exercício de suas funções não encontram óbices legais e éticos”.
Não obstante, infelizmente há também o emprego de algumas das preciosas inovações tecnológicas na contramão dos preceitos acima destacados, promovendo a automação da advocacia, a qual retira do quadro o contato humano inicial entre profissional e cliente e subverte a lógica idealizada para exercício sensato da advocacia.
Trata-se do uso de bots para interação com os destinatários de serviços jurídicos, com o pretenso intuito de facilitar a propositura de demandas judiciais, tática voltada especialmente a indivíduos que se encontram em relações de vulnerabilidade (consumidores, empregados).
Bots são aplicações de software concebidas para simular ações humanas de maneira padrão. Logo, esses robôs são capazes de “conversar” com os sujeitos de direito, lançando mão de falas pré-programadas a conduzirem a efetiva tomada de decisão quanto à propositura de medidas judiciais pré-concebidas pelos profissionais que os administram.
Batizados com nomes amigáveis, que disfarçam sua condição inumana, tais botscostumam ser dotados de linguajar cordial e despojado, além de serem acessíveis em ambientes descontraídos de mídias sociais, por meio de links estrategicamente inseridos em publicações chamativas e de tom sensacionalista.
Não raro tais robôs divulgam aos quatro ventos oportunidades de ações judiciais, geralmente atreladas a promessas de ganho de causa, passando longe da ponderação de riscos e das consequências envolvidas, desvirtuando o idealizado pelo Código de Ética e Disciplina da OAB.
Ademais, a utilização de tais artifícios robóticos por vezes vem combinada com a assunção de custas judiciais e honorários advocatícios pelos mentores da iniciativa, que se colocam como verdadeiros patrocinadores de causas, em busca de maior adesão dos sujeitos de direito. Nesse tocante, o emprego de bots seria apenas a ponta do iceberg de modelos de negócios manifestamente ilícitos, baseados na captação indevida de clientes e na promoção irresponsável de ações repetitivas.
Nesse cenário, fica fácil antever que a difusão da utilização irresponsável de botspode fomentar o abuso do direito de ação e resultar em considerável aumento de demandas sob os cuidados do já assoberbado Poder Judiciário brasileiro, o que vai de encontro às noções processuais mais modernas, que apontam para a instrumentalidade do processo e o fortalecimento de mecanismos de soluções alternativas de conflito.
Nesse contexto, retomam-se trechos do já mencionado julgamento da 1ª Turma de Ética Profissional do Tribunal de Ética e Disciplina da seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil, que advertem:
“As inovações tecnológicas com vistas a auxiliar o advogado no exercício de suas funções não encontram óbices legais e éticos. Diferente, contudo, a situação de determinadas iniciativas tecnológicas que, a pretexto de darem suporte às atividades advocatícias, em realidade, prestam-se a acobertar mecanismos para mercantilização da profissão advocatícia, ou mesmo servem como veículo de facilitação à captação indevida de clientes”.
(…)
“Logo, inovações tecnológicas direcionadas à advocacia que confiram caráter mercantilista à profissão ou auxiliem e induzam à captação de clientela, que são minoria, estão vedadas, porque colocam em risco a segurança e as proteções conferidas pelo sistema aos destinatários do Direito”.
No mesmo sentido, o Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e a OAB Seccional do Rio de Janeiro – OAB/RJ repudiaram iniciativa de uso de bots para ingresso na Justiça do Trabalho, afirmando que “a advocacia é atividade privativa de advogados e advogadas”2.
Vale frisar que os maiores prejudicados pela mercantilização do exercício da advocacia, por meio do emprego de práticas predatórias de aliciamento de clientela e estímulo à chamada Indústria do Dano Moral, acabam sendo os sujeitos de direito, pois se veem manipulados e, atraídos por falsas promessas, se submetem ao litígio desprovidos do adequado aconselhamento moral, psicológico e financeiro.
Diante disso, lamenta-se que a inovação tecnológica – relevante a diversas atividades desempenhadas no contexto da economia digital, para o bem do progresso da humanidade – seja utilizada para finalidades desvinculadas dos princípios que regem o exercício da advocacia. Nesse contexto, entende-se que cabe o alerta à sociedade quanto a tais práticas, no sentido de prevenir que nosso Poder Judiciário venha a servir para alimentar modelos de negócio que possam não atender o propósito da existência da atividade jurisdicional.