Rita Cortez
A recente revelação sobre a continuidade da política de execução dos opositores da ditadura militar, orientada pela CIA e adotada pelo então presidente Ernesto Geisel, provocou a providencial rediscussão sobre a aplicabilidade e abrangência da Lei da Anistia. Decorridos quase 40 anos desde a sua entrada em vigor, a Lei 6.683/79 ainda gera polêmica quanto ao seu alcance, apesar da ampla comprovação de atos de tortura e extermínio de cidadãos brasileiros contrários ao regime militar implantado no país em 1964.
Farta literatura produzida com a retomada do estado democrático de direito, além do levantamento realizado pela Comissão Nacional da Verdade, contido em relatório consubstanciado em inúmeras denúncias e depoimentos dos sobreviventes, nos dão conta das atrocidades cometidas ao longo daquele período. O fato é que milhares de brasileiros foram vítimas de tortura e mortos durante os 20 anos da ditadura militar. A revelação do documento da CIA, portanto, reforça, de maneira veemente, as conclusões da Comissão da Verdade e robustece a necessidade de se promover a urgente e imprescindível reinterpretação da Lei da Anistia, com a consequente revisão pelo STF.
O debate jurídico que resultou na concessão da anistia aos que praticaram torturas, desaparecimentos forçados, detenções arbitrárias e ocultação de cadáveres pautou-se no confronto entre a Lei 9.455/97, que define o crime de tortura, e a que concedeu a anistia, Lei 6.683/79. De um lado, o argumento jurídico calcado no princípio da irretroatividade da lei penal mais severa, em cotejo com a tese da imprescritibilidade do crime de tortura. De outro, a aplicação do inciso XLIII do artigo 5º da Constituição Federal, estabelecendo que a tortura é insuscetível de fiança, graça ou anistia.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, em seu artigo V, já instituía que ninguém seria submetido a tortura, nem a tratamento ou castigo cruel desumano ou degradante, sob entendimento de que os direitos humanos são os direitos inerentes à própria pessoa. Assim, a tortura não seria um crime político, mas um crime contra a Humanidade. Segundo a OEA, não existe anistia para crimes contra a Humanidade e muito menos a autoanistia.
Numa sociedade historicamente violenta e autoritária, o que a ditadura fez foi aprofundar essa situação crônica de uso da tortura e de extermínio contra a população pobre. A ausência da necessária investigação e apuração destes crimes perpetrados por agentes públicos, sem punição, possibilita que a polícia continue matando e arrancando confissões sob tortura. Não só a polícia, mas criminosos também.
Talvez o STF possa rever, como se espera de uma Corte Constitucional, os óbices colocados por uma lei de anistia forjada e aprovada em plena ditadura militar. Rita Cortez é presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB)
Rita Cortez é presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB)
Fonte:https://www.bemparana.com.br/blog/tupan/post/contra-a-humanidade