Sob o pretexto de combater a corrupção, o MP arregimentou milhares de assinaturas a favor do PL 4.850, que, assim, ganhou a falaciosa roupagem de projeto de iniciativa popular. Não conheço ninguém que, tendo apoiado o projeto dito “salvador da Pátria”, o conheça minimamente.
O PL não se restringe a “dez medidas contra a corrupção”. Pretende alterar as legislações penal e processual penal, desprezando princípios consagrados na Constituição.
Estado de direito não é um conceito etéreo. Nas palavras de Linda Greenhouse, vencedora do Pulitzer em jornalismo, “é a base da resiliência para absorver os choques que todo sistema político enfrenta”. É aquele Estado no qual os cidadãos, a despeito das preferências de seus governantes, terão garantidos direitos fundamentais contra a interferência abusiva do Estado.
Normas de proteção dos direitos fundamentais devem ser preservadas para evitar abuso de poder e o risco de julgamentos desprovidos de formalidades, que não devem ser flexibilizadas em razão da gravidade do crime. Como adverte o ministro Marco Aurélio Mello, “quanto mais grave a imputação, maior deve ser o zelo na observância das franquias constitucionais”.
Na contramão de conquistas políticas, éticas e jurídicas, o projeto propõe redução de recursos defensivos, sob a falsa premissa de que seriam causadores da morosidade judicial; restrições ao habeas corpus e a admissão da prova ilícita, se obtida “de boa-fé”, seja lá o que isto quer dizer.
Não bastasse, institucionaliza o anonimato, ao autorizar o MP a esconder suas fontes de prova, e perverte o sistema de nulidades, premiando o Estado quando este atua de “outra forma” que não aquela prevista em lei e preservando atos de juiz incompetente. E pretende a alteração das regras de prescrição, como se fossem estas um indesejável benefício do “criminoso”.
Mais: cria nova hipótese de prisão cautelar, para impedir que valores supostamente ilícitos “sejam utilizados para financiar a fuga e a defesa do investigado ou acusado”. Prende-se para que o investigado não possa custear a defesa que lhe é constitucionalmente assegurada. Incrível.
E o “teste de integridade”? Uma pegadinha! Agentes do Estado simulam situações, “com o objetivo de testar sua moral e predisposição para cometer ilícitos”. Mas os autores do projeto advertem: “É vedada a realização de testes que representem uma tentação desmedida, a qual poderia levar uma pessoa honesta a se corromper”. A moral do servidor público tem preço?
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Por fim, institui a execução provisória da pena antes do trânsito em julgado da sentença, em ofensa ao princípio constitucional da presunção de inocência.
As propostas do PL 4.850 representam sério risco ao estado de direito, pois colocam o cidadão em posição de hipervulnerabilidade perante o poder absoluto de um Estado sem freios. A relativização de direitos fundamentais não condiz com a ideia de estado de direito. Não é rasgando a Constituição de um país que faremos um país melhor.
Letícia Lins e Silva é advogada
OS MEMBROS DO IAB ATUAM EM DEFESA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO. FILIE-SE!