Emanuel Soledade

Emanuel Soledade

18 de maio de 2012

Instituto dos Advogados Brasileiros


Introdução

O conceito de estado de exceção é, entre outros conceitos da modernidade, um conceito de difícil definição. Encontra-se entre alguns domínios: o político, o jurídico, a história, a biologia e a ética. Sua realidade se impõe nos períodos de crise política. Fora do terreno da segurança jurídico-constitucional, o conceito almeja um estatuto formal, mas está fora da positivação, dado que é exatamente exceção desta.

O estado de exceção reivindica o exercício de uma violência não regulada pela Lei e, com isso, rompe como o antigo Nómos. Porém, se rompemos com o ordenamento jurídico, se nos colocamos fora da reserva legal e do sistema pactuado de limitações recíprocas, então o que temos?
Frente ao paradoxo revelado por este conceito, somos levados a repensar o que é e qual o lugar do Direito; somos levados a buscar seu fundamento enquanto legitimidade de obrigar, e ainda ele nos leva a pensar e a dizer o que é o homem.

Nossa argumentação tem como ponto de partida a perspectiva kantiana deontológica do Direito, dado que ela é a base, até hoje, do seu entendimento. Em seguida, vamos problematizar o conceito de estado de exceção em usos analógicos. Como terceira parte do trabalho, pretendemos assumir as categorias trazidas pela filosofia contemporânea - filosofia cujo propósito é a realização de um diagnóstico da realidade.

Por fim, concluiremos no sentido de que essas duas perspectivas, a que projeta um dever-ser, enquanto análise hipotética dedutiva e a que revela o factual, o que vem sendo feito, ao invés de perspectivas antinômicas, devem ser consideradas segundo uma complementaridade, a qual se realiza pelo poder da reflexão que conduz à autonomia.


I - Uma Perspectiva Deontológica do Direito - o que ele deve ser.


Duas respostas à pergunta "o que é o Direito" nos foram fornecidas por Immanuel Kant na Metafísica dos Costumes. A primeira afirma que: "O direito é, então, o conceito que une as condições pelas quais o arbítrio de um pode estar de acordo com o arbítrio de outro, segundo uma lei universal de liberdade". (parágrafo B, VI, 231) Com isto, entendemos que o conceito moral de Direito refere-se a uma obrigação, a um dever o qual concerne a relações intersubjetivas, entre arbítrios livres, onde não se considera a matéria do arbítrio (o fim a que cada um se propõe), mas tão somente a forma da relação. Isto significa que o direito representa um conjunto de condições sob as quais os arbítrios podem coexistir na liberdade.

A segunda resposta kantiana à questão concerne ao conceito de Direito estrito. Agora, embora se trate de um mesmo conceito de Direito, ele chama a atenção para uma especificidade, a qual o difere da moral. O Direito estrito, enquanto obrigação mútua, é inseparável da faculdade de obrigar, isto é, inseparável da ideia de uma legítima resistência a qualquer obstáculo que se oponha à liberdade.

A faculdade de obrigar, portanto a violência legal, é introduzida na argumentação kantiana como um poder de tornar possível que as ações livres coexistam. O fundamento deste poder não significa uma mera usurpação ilegítima. O Direito enquanto força de obrigar se legitima como "obstrução da obstrução", ou seja, como um poder que restabelece a coexistência das liberdades. Justa é, pois, toda ação que não constitui obstáculo ao arbítrio livre dos demais . Logo, a força que se opõe à injustiça é uma resistência exercida, verdadeiramente, em favor da liberdade.

Duas considerações ainda precisam ser feitas. Para Kant, uma legislação existente apresenta o que consideramos justo (quid sit Juris). Um jurista conhece a lei em um determinado tempo e lugar. A questão que cabe à filosofia é indagar se aquilo prescrito por esta lei como sendo o direito é justo. Isto significa que a tarefa da filosofia é fornecer um critério capaz de reconhecer, de identificar o justo. Trata-se da busca por um critério de identificação do justo, de uma investigação cujo propósito é encontrar quais são as condições em que podemos afirmar que algo seja justo. No que compete à filosofia, é necessário, portanto, deixar à parte qualquer princípio empírico que fundamente as escolhas realizadas, e assim indagar tão somente os fundamentos de uma possível legislação pura. O conceito de Direito, depois de revelado, fundado, torna-se, então, um critério com o qual podemos avaliar juízos singulares. A compatibilidade formal instituída pela investigação filosófica não nos diz o que devemos fazer, mas como devemos agir: "Agir externamente de forma que o uso livre do arbítrio possa estar de acordo com a liberdade de qualquer outro". Trata-se do Princípio Universal do Direito , imperativo categórico moral sob o domínio jurídico.

Coube antes a Fundamentação da Metafísica dos Costumes desconsiderar qualquer matéria de arbítrio, isto é, qualquer fim do querer. Já se encontrava lá fundado o aspecto formal do Direito, a forma da lei, isto é, aquilo que se impõe como um imperativo a todo ser racional, de forma categórica. E o que se impõe como imperativo categórico a todo ser racional? Suspendendo hipoteticamente toda a matéria que possa ser objeto das escolhas; abstraindo-se qualquer fim que o homem possa desejar, o que resta para um ser capaz de justificar suas próprias escolhas, isto é, um ser capaz de fornecer as razões para o seu querer é a pura universalidade: "eu não devo agir senão de modo que eu possa querer que a máxima que fundamenta minha ação se converta em regra para todos, sendo, assim, universalizada" .

É imperativo que a máxima, princípio subjetivo do querer e regra que fundamenta a ação, possa ser universalizada. Isto significa dizer que: - age moralmente quem ao escolher para si escolhe também para todos!

De que forma apresenta-se aqui a exceção? Todo ser racional é capaz de reconhecer uma regra quando ela pode ser universalizada. E quando ela não pode ser universalizada, sob pena de inviabilizar a coexistência em sociedade, o que se quer, na verdade, é uma exceção para si. Assim, quem age de forma racional age moralmente, e por isto mesmo livre, isto é, não sendo obstruído ou pelas suas próprias paixões (domínio moral estrito sensu) ou sendo obstruído pelo exercício do arbítrio do outro (domínio do Direito) .

A compatibilidade das ações é a única exigência imposta pela moral. Trata-se de uma mesma lei que deve ser aplicada sob o domínio moral (virtude) e domínio jurídico (direito). A exigência intersubjetiva continua sendo a compatibilidade das liberdades, e o que é específico no universo jurídico é que tal universo traz um motivo adicional ao cumprimento da lei: a coação. Dado que não podemos esperar que os homens se determinem em suas ações, não há garantias que o querer humano acompanhe sempre o dever, que o homem sempre aja de forma moral, ou seja, justa. O direito acrescenta um motivo adicional ao cumprimento da lei - a coação.

Na Fundamentação se encontra a base para todo o argumento moral kantiano: a lei, o imperativo que se impõe, inclusive como imperativo categórico jurídico, é a compatibilidade da liberdade. Agir moralmente é poder universalizar a regra que fundamenta a ação. Trata-se de um critério formal sim, contudo é possível dele derivar três consequências: que ao legislar para si, o homem possa legislar para todos (idéia de que cada homem é um legislador universal); que um indivíduo jamais considere outro como meio para obtenção de seus propósitos, mas somente como um fim em si mesmo; e das duas anteriores resulta que cada homem deve ser considerado em sua dignidade, que cada pessoa singular representa a própria humanidade como um todo .

Conhecemos a lei e as suas formulações derivadas. Resta-nos ainda responder de que forma o arbítrio humano se relaciona com a lei. Frente à lei moral existem três hipóteses: o arbítrio se determinar na ação pela lei (agir por dever); a mera exigência de conformidade com a lei (exigência jurídica); e que, embora se tenha consciência da lei, a natureza humana possa escolher o mal. O mal encontra-se no gênero humano e precede a qualquer escolha e ação individual . O mal não surge, ele se encontra na origem, faz parte da liberdade. Se a liberdade fosse só para o bem não seria liberdade. Aqui nos separamos do jurídico, ou seja, do plano ideal, e entramos no domínio histórico-político. As categorias trazidas por autores como Hannah Arendt, Agamben, Benjamin e Adorno se tornam, então, decisivas para diagnosticar a realidade de nossas escolhas.

Kant concebeu o mundo submetido a um princípio teleológico: tudo que existe atende a um propósito, tem um Télos que lhe é próprio. Somente o homem se determina por fins que ele mesmo se dá. Trata-se do único ser que constrói seu próprio ser.

A condição propriamente humana da liberdade-racionalidade fornece um indício, aponta para uma direção possível de progresso para a paz perpétua, e o Direito ocupa aí a função de regular nossas escolhas. O fio condutor poderia ser a razão na construção de uma história de superação da insociável sociabilidade humana. Entretanto, a índole moral, dado que racional, não é garantidora da determinação do homem sobre o arbítrio na determinação da vontade. Neste sentido, quando tornamos claras quais vêm sendo as nossas escolhas, revelamos o que temos feito da nossa liberdade.

II - Considerações acerca do Conceito de Estado de Exceção - Exceção decidida.

Não pretendemos recuperar toda a trajetória conceitual, mas somente pontuar alguns elementos concernentes a essa discussão. A dificuldade de se fornecer uma definição do conceito de estado de exceção está primeiramente no fato de ele surgir sempre em uma zona oposta ao estado normal.

Tal conceito surge sempre como análogo a outros conceitos, iremos nos referir `a algumas circunstâncias políticas onde isso ocorre. Por exemplo, ele surge como uma resposta imediata do poder estatal `a conflitos internos, apresenta assim uma estreita ligação com a guerra civil. Tomando como exemplo o caso do Estado nazista, o Decreto promulgado por Hitler para "a proteção do povo e do Estado" suspendeu artigos da Constituição de Weimar relativos às liberdades individuais, o que, segundo Agamben, instaurou, por meio do estado de exceção, uma guerra civil legal que durou 12 anos . Tal forma de totalitarismo permitiu "a eliminação física não só de adversários políticos, mas também de uma categoria inteira de cidadãos. Esta criação voluntária de um estado de emergência permanente tornou-se uma das práticas essenciais nos Estados contemporâneos , criando um patamar de indeterminação entre democracia e totalitarismo.

O autor, em obra intitulada Estado de Exceção, cita ainda um outro exemplo, um ato normativo recente, ato promulgado pelo presidente dos Estados Unidos em 13 de novembro de 2001, a "military order", que autorizou uma "indefinida detenção" e o relativo processo perante a "comissão militar" de não cidadãos suspeitos de envolvimento em atividades terroristas. Também o " Patriot Act", promulgado em 26 de outubro de 2001, permite "manter preso" o estrangeiro suspeito de atividades que ponham em perigo a "segurança nacional". A novidade trazida por esta nova "ordem" consiste em anular o estatuto jurídico do indivíduo, produzindo um ser inclassificável, dado que eles não são prisioneiros de guerra (Convenção de Genebra), nem prisioneiros acusados segundo leis norte-americanas. Nem prisioneiros, nem acusados, apenas detentos - detenção fora do controle judiciário, a exemplo dos detentos de Guantánamo.

Acrescentamos agora as noções como "estado de Sítio" e "lei marcial", elas nos revelam em algum sentido exceções, mas ainda são direitos especiais, e portanto, regulados pela lei. O fundamento do estado de exceção poderia ser ainda pensado a partir dos conceitos de estado de necessidade e estado de emergência. Afirmar que por necessidade muitas coisas podem ser realizadas contra a regra é atribuir à necessidade o poder de tornar lícito o ilícito. Justifica-se uma transgressão por meio de uma exceção.

A necessidade não é fonte de lei, nem tampouco suspende a lei, ela subtrai um caso particular à aplicação geral da norma, isto é, a lei não deve, neste caso, ser observada. O princípio da necessidade aplica-se sobre uma situação particular, em que a lei perde sua "vis obligandi". É preciso distinguir, instâncias descritivas factuais de domínios prescritos deontológicos. Deveres projetados de forma normativa buscam o caráter de objetividade. Contudo, são os juízos subjetivos que avaliam o que há por ser considerado necessário, emergencial, excepcional. Significa dizer que o conceito de necessidade é aqui absolutamente subjetivo, tratando-se de um conceito meio.

O critério de necessidade surge, deste modo, subordinado a uma decisão, a uma escolha do poder executivo . Nem mesmo se trata aqui da técnica de integração no Direito. Não estamos nos deparando com lacunas geradas pela insuficiência, obscuridade ou omissão legislativa. Aqui, a lei existe, ela permanece em vigor, mas cria-se um espaço onde sua aplicação é suspensa, isto é, uma anomia, um estado de exceção.

Então, como pode uma anomia ser inscrita na ordem jurídica? O que podemos dizer da pretensão de regular, por lei, o que, por definição, não pode ser normatizado? Pretendemos uma previsão constitucional ou legislativa do estado de exceção? E se regulássemos o direito de resistência? Resistimos quando os poderes públicos violam as liberdades fundamentais e os direitos garantidos pela Constituição. É certo que nos referimos a um direito-dever do cidadão contra a opressão. O fundamento de tal certeza pode e deve estar garantido constitucionalmente, mas, por certo, não pode estar regulado. A hipótese da regulamentação normativa, e conseqüente punição pelo não cumprimento, no estado de exceção e no direito de resistência é totalmente inócua. Qual então o significado jurídico de uma esfera extrajurídica?

A Doutrina da Segurança Nacional no Brasil pode ser apontada como exemplo da legalidade na emergência, como estado de exceção.

No Brasil, em 1º de janeiro de 1979 é revogado o Ato Institucional nº 5, ato que representou a fase mais ostensiva da ditadura. Porém, embora revogado, parte de seus dispositivos foram embutidos na Constituição, como é o caso do conceito de "estado de emergência" , estado que poderia ser decretado em momento de crise, sendo que a avaliação e a decisão sobre o que é crise cabia, exclusivamente. ao Poder Executivo. O Poder Executivo atribuiu a si poderes excepcionais de suspender as garantias individuais.

Com a deposição do presidente Goulart em 2 de abril de 1964, instalou-se no governo um projeto para a sociedade, projeto que vinha sendo criado, desde a década de 50, na Escola Superior de Guerra, e cuja ideologia tinha como base a Doutrina da Segurança Nacional.

A Defesa Nacional trouxe, no pós-guerra, uma nova concepção que dizia respeito não a eventuais ataques externos, mas à proteção do Estado contra inimigos internos que "procuravam solapar as instituições". A ESG (Escola Superior de Guerra) passou, então, a ser formadora dos quadros dos cargos sucessivos no governo, e a ter ainda como função gerar a ideologia oficial do Regime Militar. Para operacionalizar esta função, foi criado o Serviço Nacional de Informações (SNI), como subproduto.
Eder Sader em obra intitulada Um Rumor de Botas, cita o lema "mais canhões, menos manteiga", que sugere a necessidade de sacrificar o bem-estar e a liberdade em proveito da segurança. Centros de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI, DOPS) ocuparam o primeiro posto na repressão política e na violação de Direitos Humanos.

A lei da Segurança Nacional não tolerou antagonismos internos, ela se sobrepôs a todas as demais leis e até mesmo à Constituição Federal em nome da defesa dos princípios constitucionais. Perpetua-se, assim, um Estado autoritário em defesa da ordem jurídica e da democracia.

O combate ao "Comunismo" foi a pedra angular da ideologia assumida pelo Estado após 1964, sendo que o período compreendido entre o Ato Institucional nº 5 , de dezembro de 1968, e a posse do General Ernesto Geisel em 1974 pode ser identificado como apogeu da ditadura militar. Garrastazu Médici, no final deste período, acrescentou, em nome do "combate à subversão", atos de tortura e inúmeras morte, além de desaparecimentos. Neste governo de exceção surgem os "atropelamentos", "suicídios", "morte em tentativa de fuga" . A visita do cardeal de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns, ao General Golbery formaliza a existência dos "desaparecidos políticos", a indagação apresentada teve como resposta do Ministro da Justiça Armando Falcão a declaração: "aqueles desaparecidos" jamais tinham sido detidos pelo Estado.

A partir de 1975, a Comissão Brasileira para Anistia inicia a abertura política, deixando como legado 10 mil exilados políticos, 4682 cassados, milhares tendo passado pelo cárcere, 245 estudantes expulsos das universidades pelo Decreto 477, e uma lista de mortes e desaparecidos estimada em três centenas .
A última abordagem a ser ainda por nós considerada diz respeito à relação do conceito de estado de exceção com a idéia de "força de lei". Para isto, recorremos à doutrina schmittiana, que concebe o estado de exceção inserido-o na ordem jurídica, ou seja, não como uma situação de anarquia ou caos, mas de legalidade. Em sua obra Teologia Política, o autor introduz neste sentido uma importante distinção: normas do Direito e normas de aplicação do Direito. Esta distinção apresenta os dois elementos fundamentais do Direito: a norma e a decisão (aplicação) - momentos autônomos que permanecem, ainda assim, no âmbito jurídico.

A teoria do estado de exceção assume agora lugar de Doutrina da Soberania, dado que é o Soberano que decide sobre o estado de exceção. Cito Schmitt:

O artigo 48 da Constituição confere ao presidente do Reich a faculdade de declarar o estado de exceção. (...) Pela "decisão", se libera todas as travas normativas frente a um caso excepcional. O Estado suspende o Direito em virtude de sua própria conservação - nos casos normais o elemento autônomo da decisão e a norma se aniquilam, mas, no caso excepcional, segue sendo acessível ao conhecimento jurídico, porque ambos elementos, norma e decisão, permanecem na marca do Direito. Isto se justifica na medida em que não exista uma tal norma que seja aplicada a um caso, a norma é sempre geral, ela requer que as condições de vida a qual ela deva ser aplicada efetivamente se mantenham em um configuração normal. Assim o suporte externo é parte de validade imanente da própria norma. Direito é sempre direito de uma situação determinada.

O conceito de aplicação do Direito é, sem dúvida, uma das categorias mais problemáticas da teoria jurídica e é o domínio da aplicação que introduz o conceito de "força de lei", no sentido mesmo de eficácia da lei ou de capacidade de obrigar. Seriam conceitos correlatos? Eficácia da lei, sabemos, refere-se a todo ato legislativo válido que acarreta a produção de efeitos jurídicos. E o que entendemos como força de lei? Trata-se de um conceito relativo, o qual expressa a posição da lei em relação a outros atos normativos do ordenamento jurídico: atos dotados de força superior (como é o caso da Constituição) ou força inferior (como são os decretos e regulamentos do executivo).

Força de lei refere-se exatamente àqueles decretos que o Poder Executivo, particularmente no estado de exceção, pode promulgar como se fora lei. De um lado, há a norma que está em vigor, mas não se aplica, não tem força, e de outro lado temos atos que não têm valor de lei mas adquirem força de lei. O estado de exceção é, portanto, um espaço onde está em jogo uma força de lei sem lei.

O argumento de defesa de Eichmann, em seu julgamento em Jerusalém, foi exatamente neste sentido: "as palavras do Fuhrer têm força de lei" .

Otto Adolf Eichmann foi capturado em Buenos Aires em 11 de abril de 1961 por um comando israelense e levado à Corte Distrital de Jerusalém para julgamento, sob as acusações de crimes contra o povo judeu, contra a humanidade, crime de genocídio, entre outros. Três juízes condenaram o réu em 15 diferentes acusações e ele foi enforcado em 31 de maio de 1962, dois dias depois de lida a sentença da Corte de Apelação .

Hannah Arendt, que havia sido enviada ao evento como correspondente de uma revista americana, observa que, no curso das sessões, onde todos esperavam um sádico e pervertido nazista anti-semita, o que encontraram ali foi alguém que sustentava ter agido de modo correto. O réu se auto qualificava como mera peça de uma engrenagem. Ele teria agido como funcionário exercendo uma função que poderia ter sido delegada a qualquer outro, de forma circunstancial. Conclui-se, assim, que, para ele, responsável por tão sofisticada logística de extermínio, onde todos seriam culpados, ninguém seria culpado.

Segundo o advogado de defesa, Dr. Sevatius, Eichmann não se declarava culpado perante a lei, pois as acusações não constituíam crimes, mas "atos de Estado", atos pelos quais "somos condecorados se vencermos e condenados à prisão se perdermos" .

Para Arendt, em sua interpretação sobre a pessoa do acusado, aquele responsável pelo programa de assassinato massivo e industrial era um burocrata, alguém que se apresentou como cumpridor, de forma zelosa, das ordens recebidas. Essa hipótese da ausência de uma forte motivação conduziu a autora, a partir daí, à denúncia de que burocracias totalitárias teriam transformado os homens em meras engrenagens, desumanizando-os. Para ela, esse totalitarismo exige ainda uma reflexão.

O horror do holocausto resta incompreensível, não só para qualquer consciência moral como também para a lógica jurídica. Dado que aqui não nos referimos a um ato isolado, mas a um massacre administrativo organizado pelo aparelho do Estado em uma atividade que se prolongou por muitos anos em estado de exceção permanente. No pós-escrito de Eichmann em Jerusalém, Arendt indaga: "como o nosso atual sistema de justiça foi capaz de lidar com este tipo especial de crime e criminoso que teve de enfrentar depois da 2ª Guerra Mundial?".

Concluimos, os conceitos de estado de guerra civil, de estado de necessidade, de emergência e de força de lei ao serem considerados conceitos análogos ao conceito de estado de exceção , o que eles revelam é , de fato, uma licença moral no domínio jurídico para o terrorismo cometido pelo próprio Estado.

III - Uma Nova Perspectiva: A Sacralidade da Vida e a Exceção Produzida.


Pensadores como Agamben, Arendt, Adorno e Benjamin vêm enfrentando o problema do estado de exceção a partir de uma nova perspectiva. Eles pretendem fornecer um diagnóstico da realidade de forma descritiva, factual. A análise das condições pelas quais o homem está no mundo revela aquilo que ele agora realiza e, assim, aquilo que ele mesmo é (nunc stans). No entanto, estes autores têm, diversas vezes, recorrido a categorias conceituais geradas pela filosofia antiga.

Os gregos não possuíam um termo único para exprimir o que queremos dizer hoje com a palavra vida. Serviam-se de dois termos: zoé, que exprime o simples fato de viver, comum a todos os seres vivos; e bíos, que indica a forma ou maneira de viver própria de um indivíduo ou de um grupo. Neste sentido, o conceito de Bíos Politikos foi definido em Aristóteles como vida qualificada, isto é, um modo particular de vida, no qual está em questão o viver bem.

A vida natural fora excluída da pólis e diferenciada da vida politicamente qualificada. Porém, no limiar da Idade Moderna ela começa a ser resgatada nos cálculos do poder estatal, de tal forma que, hoje, a política se transformou em biopolítica. O ingresso de Zoé na esfera da Pólis, a politização da vida nua como tal, constitui um evento decisivo na modernidade. Tal ingresso assinala uma transformação radical das categorias político-filosóficas com relação ao pensamento clássico, tornando ineficazes antigas oposições como, por exemplo, direita/esquerda, privado/público, totalitarismo/democracia, as quais se encontram hoje em total zona de indiscernibilidade.

Hoje o homem não conhece maior valor ou desvalor que a vida, ainda que a questão da qualidade de vida do homem tenha sido conduzida a uma verdadeira aporia. A política não consegue construir uma articulação entre Zoé e Bíos. A vida nua continua presa à política, mas na forma da sua exceção - ela é algo que se encontra incluída através de sua exclusão.

A definição schmittiana de soberania, já dissemos, coloca o soberano como aquele que decide sobre o estado de exceção. E o que isto significa? Ele tem o monopólio da decisão última, decisão de excluir-se à hipótese legal. Ele está ao mesmo tempo fora e dentro do ordenamento jurídico. A exceção soberana é a pressuposição da referência jurídica na forma de sua suspensão. A exceção escapa da regra e afirma a regra. Dado que o Direito não possui em si mesmo nenhuma existência própria, ele não é outro senão aquele que dá "uma maneira `a vida". O seu ser é a própria vida dos homens .

Recorremos mais uma vez a categorias da filosofia clássica, `a distinção aristotélica entre ato (Dynamis) e potência (Enérgeia), a qual nos auxilia no esclarecimento do novo conceito de soberania. Potência é sempre de realização em ato ou de não realização. Neste sentido, a distinção oferecida refere-se `a ideia de poder constituinte e de poder constituído, de vigência sem significado ou de vigência como simples forma de lei. Estado de exceção toma a forma aqui de vida submetida, regulada por uma lei que vigora sem significado.

Agamben acredita que o estado de exceção conduz a um paradoxo, pois nele torna-se impossível distinguir a transgressão da lei e a sua execução. Nele não é mais possível identificar quem viola a lei e quem se encontra em conformidade com ela. Afinal, elas coincidem .

A oitava proposição formulada por Walter Benjamin em "Conceito de História" é a origem da compreensão de que o estado de exceção não apenas seja efetivo como também tenha se tornado a regra geral.
Cito Benjamin:

A tradição dos oprimidos nos ensina que o "estado de exceção" no qual vivemos é a regra. Precisamos chegar a um conceito de história que dê conta disso. Então surgirá diante de nós, nossa tarefa, a de instaurar o real estado de exceção; e graças a isso, nossa posição na luta contra o fascismo tornar-se-á melhor.

Para compreender esta célebre passagem benjaminiana, recorremos ao pensamento de Arendt capaz de esclarecê-la. A autora afirma: "A Vida como bem supremo, isto é, a crença fundamental na sacralidade da vida sobreviveu à secularização e ao declínio geral da fé cristã. A derrota do "homo sacer" instaurou no mundo a prevalência do "animal laborans" Para a autora, com a ascensão da vida activa sob a vida contemplativa, a atividade do trabalho veio a ser promovida `a mais alta posição entre as capacidades do homem. E o que isto significa? A vitória da condição natural do vivente sobre qualquer outra condição , isto é, a ascensão da vida biológica como bem supremo. Portanto, Arendt identifica no surgimento da esfera social, responsável pela perda da divisão entre público e privado e entre jurídico e natural, e responsável também pela supremacia da condição biológica do homem como animal laborans, a razão da afirmação benjaminiana de que o estado de exceção tornou-se a regra geral.

No sistema de Estado-Nação, os ditos direitos sagrados e inalienáveis do homem, nas declarações dos direitos, parecem representar a inscrição da vida natural na ordem jurídico-política. A vida natural que pertencia ao Cosmo, `a Physis ou a Deus entra agora na estrutura do Estado e torna-se, assim, o fundamento da sua legitimidade e de sua soberania.

O puro fato do nascimento garante agora aos homens direitos inalienáveis e imprescritíveis, direitos tutelados ao homem cidadão. O princípio da natividade e o princípio da soberania unem-se agora para constituir-se como fundamento do novo Estado-nação. Critérios como ius soli (nascimento em determinado território) e ius sanguinis (genitores cidadãos) ingressam no cenário jurídico. A genética torna-se uma antropologia essencial para a política. Redefine-se, assim, quem é e quem não é, por exemplo, alemão; redefine-se e restringe-se o limiar que separa aquele que está dentro daquele que está fora dos muros da cidade.

A partir da primeira guerra mundial, aparece a figura do refugiado e apátrida (`a exemplo dos russos, armênios, búlgaros...). Com este aparecimento, tornam-se confusas as distinções de nascimento, nacionalidade e cidadania. O fenômeno de deslocamento de massa cria um novo estatuto, diferenciado do estatuto político - um estatuto com "caráter humanitário e social" . Para responder a este problema é que organismos supranacionais foram criados, como o Alto Comissariado para Refugiados da ONU (1951).

O que exatamente se revela com a separação entre o humanitário e o político? Surge, então, o conceito de campo, o qual significa o espaço puro e absoluto da exceção, o paradigma biopolítico do isolamento da vida sacra. Trata-se da vida nua separada e excepcionada no ordenamento estatal, ainda que através da figura dos Direitos Humanos.

Questões éticas avançam cada vez mais sobre o domínio da Biologia, e ambas, Biologia e Ética, se entrelaçam no território jurídico. Simplesmente, hoje está em pauta, no cenário mundial, a autorização da aniquilação da vida indigna de ser vivida . Por exemplo, a legitimidade da eutanásia, o aborto do feto anencéfalo, entre outros casos. Discute-se o valor ou desvalor da vida como tal, vidas humanas que perderam a tal ponto a qualidade de bem jurídico que a sua continuidade, tanto para o portador como para a sociedade, perdeu todo o valor. Onde a vida cessa de ser politicamente relevante, ela vigora somente enquanto vida sacra. Como tal, pode ser impunemente eliminada. É a sociedade que fixa este limite, que decide quem são os "homens sacros". Portanto, este marco depende da politização e da exceção da vida natural na ordem jurídica estatal.

O governo do Reich é considerado por muitos como o maior exemplo de eliminação da "vida indigna de ser vivida". De início, a eliminação se deu sobre os doentes mentais incuráveis. Estima-se que 70 mil pessoas foram mortas, submetidas a experiências em nome da manutenção de um patrimônio genético (corpo biológico da nação). Chamada de "questão humanitária", o poder soberano tornou a vida nua, a vida indigna de ser vivida, vida matável .

Agamben refere-se, ainda como exemplo, aos oitocentos detentos que nos Estados Unidos foram infectados . Pesquisas tornaram detentos cobaias humanas sob a farsa do "consentimento voluntário", como é o caso de práticas que apontam para pesquisas com radiações nucleares. Tais experimentos se dão sobre homens privados de quase todos os direitos, isto é, excluídos da comunidade política, biologicamente vivos, em uma zona-limite entre morte e vida, desligados do estatuto político normal, em estado de exceção, portanto, abandonados.

Qual a estrutura político-jurídica de um campo? Campos de concentração não são exemplos de exceções da legalidade que ficaram na história. São matrizes ocultas, "normas" do espaço político em que ainda vivemos. Sobre uma população civil, aplica-se uma medida de internamento com "custódia preventiva", medida policial preventiva, independente de qualquer conduta pessoal relevante, unicamente com o fim de evitar um perigo para a segurança do Estado. Podemos agora definir a idéia de campo: espaço que se abre quando o estado de exceção torna-se a regra. Agora, a suspensão temporal do ordenamento, com base numa situação fictícia de perigo, adquire aqui disposição permanente.

Ora, na medida em que o estado de exceção é "desejado", se inaugura um novo paradigma jurídico-político. O soberano não se limita a decidir sobre a exceção, agora é ele que produz a exceção. O corpo biopolítico que constitui o novo sujeito político fundamental não é "quaestio facto" (identificação de um certo corpo biológico), nem uma "quaestio iuris" (identificação de uma norma a ser aplicada), mas a aposta de uma decisão política soberana.

Para Agamben, conceitos como bem comum, iniciativa imperiosa, motivo relevante, segurança nacional, ordem pública, estado de perigo e caso de necessidade não se referem a normas e `a idéia correspondente de que estas regulam a priori as situações que o juiz deverá decidir. São conceitos indeterminados que pertencem ao universo hermenêutico. Elaboração e execução, produção de direitos e sua aplicação não são mais momentos distinguíveis.

O conceito de estado de exceção revela a zona de indistinção sobre dualismos classicos: inclusão e exclusão, público e privado, natureza e cultura, Zoé e Bíos, fato e direito - são distinções que perderam aqui o sentido. Estado Democrático de Direito torna-se, assim, um conceito inexistente, pois não corresponde a nenhum objeto que lhe seja congruente, não tendo, portanto, realidade.


Conclusão


Giorgio Agamben, em sua obra intitulada O que resta de Auschwitz, sobre o depoimento do escritor e ex-prisioneiro Primo Levi, insiste na idéia de paradoxo. O que resta parece estar se referindo a um dever de memória, memória do que pode ser considerado como total falência do modelo - comportamento em conformidade à norma, maior exemplo da ruína da ética da dignidade. A idéia de resto sugere um vazio, uma lacuna. O valor dos testemunhos dos antigos prisioneiros está em revelar exatamente aquilo que lhes falta. Prisioneiros reduzidos a cadáveres ambulantes não falam mais, perderam a linguagem. Daí o paradoxo, pois testemunham aquilo que escapa à comunicação, que escapa a qualquer compreensão e registro.

Sentenças foram dadas em Nuremberg, culpas foram atribuídas, mas o direito não esgotou o problema, mesmo porque, se tivesse esgotado, teria que admitir sua própria ruína. Meio século se passou e o que ocorreu continua sendo "indizível".

Redimir-se da culpa moral ou da imputabilidade jurídica é ainda pouco, pois continuamos no banco dos réus, como declarou Arendt. E continuamos sem falar daquilo que não suportamos olhar. Corpos, cadáveres amontoados, pilhas e pilhas de vestimentas e sapatos deles retirados foram encontrados e documentados. Mas muito pouco ainda sabemos sobre os muçulmanos. Mas quem são os muçulmanos?
Muçulmanos são os prisioneiros que foram abandonados pelos próprios companheiros, cadáveres ambulantes com desnutrição, opacos, vazios, esgotados, ausentes, sem reação, sem consciência, sem fala. Vagavam sem rumo ou ficavam encolhidos ao chão, com as pernas dobradas de maneira oriental, prontos para morrer, sem morrer. Mortes não morridas, mortes em massa, centenas de milhões. A própria morte perdeu aí sua dignidade.

Primo Levi, em Agamben, refere-se a Hurbinek, o nome dado a um menino de aproximadamente três anos, encontrado no campo depois da libertação. Nada se sabia sobre ele, não sabia falar, tinha as pernas atrofiadas, à noite ficava no canto, emitia sons, variações de um mesmo som, parecia querer romper o seu próprio silêncio. Sobre sua existência, dado que morreu logo em seguida, Agamben cita Primo Levi: "nada resta dele: seu testemunho se dá por meio de minhas palavras" .

O testemunho dado pelos sobreviventes revela um novo tipo de humanidade, o muçulmano, onde a perda da dignidade e da decência foi além de qualquer imaginação, e ainda assim restava a vida. Em entrevista concedida em 1964 a Günter Grass, Hannah Arendt declarou, referindo-se a Auschwitz: "Ali aconteceu algo com que nós não podemos reconciliar. Ninguém de nós pode fazê-lo" .

Então, o que nós não podemos reconciliar? Tomar como tema a morte? Falar de algo infinitamente mais ultrajante que a morte? A sacralidade da vida e da morte foi posta em questão, como está em questão a própria humanidade do homem. Como foi possível um poder, cujo objetivo era essencialmente o de fazer viver, ter exercido tal incondicionado poder de morte? Agamben recorre aqui à resposta dada por Foucault à pergunta, em 1976, no Collège de France, "o racismo é justamente o que permitirá ao biopoder estabelecer cortes, qualificar os seres como inferiores, em resumo, estabeleceu uma censura que será do tipo biológico".

Por fim, registra-se um sentimento, o de vergonha. Ela, a vergonha não deriva da consciência de uma imperfeição ou da carência do nosso ser frente a outro do qual nos distanciamos. Ela fundamenta-se, ao contrário, na "impossibilidade do nosso ser dessolidarizar-se de si mesmo, na sua absoluta incapacidade de romper consigo próprio" .

Nas palavras de Levi, são os muçulmanos os verdadeiros paradigmas do homem de hoje. Verdadeiramente humano é aquele cuja humanidade foi integralmente destruída. A comunidade que vaga, como mortos vivos no lixo de Gramacho, os antigos habitantes enxotados de Pinheirinho, os contorcidos magros, opacos, ocupantes das cracolândias, os espremidos e torturados do sistema carcerário: os removidos da nossa visão que não suportamos olhar abandonados nos abrigos, as crianças que vagam sem passado e futuro, estes, sim, são a regra, e nós, a exceção. Mas eles, como o menino descrito por Levi, eles não têm fala.

A Comissão da Verdade é um direito legítimo à história de um país, mas é preciso se ter coragem para admitir que a licença moral para a tortura hoje cometida pelo Estado em nome do Direito, é nossa escolha e nossa responsabilidade.

A violência não é um destino natural, mas uma decisão. Como declara Adorno em Educação e Emancipação, na qual discute as razões que levaram a sociedade alemã à adesão à barbárie: "O único poder efetivo contra o princípio de Auschwitz seria a autonomia, para usar a expressão kantiana; o poder para a reflexão, a auto-determinação" .




Bibliografia:



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