OPINIÃO

CONSÓCIOS

Sexta, 23 Novembro 2018 09:55

STF e estado de direito

Jorge Rubem Folena de Oliveira
Advogado e cientista político. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros. Pós-doutor em ciências sociais (CPDA/UFRRJ), Doutor em ciência política (IUPERJ) e Mestre em Direito (UFRJ).
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O mundo está em transe. Por todos os cantos deparamo-nos com as propostas de restrição de direitos fundamentais, num claro sinal de que o sistema político liberal atravessa uma profunda crise, na medida em que não está conseguindo manter com segurança o Estado Democrático de Direito nem prover os meios mínimos necessários para que as pessoas possam viver em paz e com dignidade.

Ao contrário do que têm sustentado importantes expoentes do constitucionalismo contemporâneo (alguns inclusive com relevantes serviços prestados na retomada da democracia no Brasil[1]), já existe uma clara ruptura da ordem política.

Isto porque, em decorrência de interesses inerentes ao patrimonialismo, permitiu-se, com passividade e cumplicidade das instituições políticas[2], que fossem desferidos ataques diretos à Constituição, como observado no caso brasileiro, desde a aventura do processo político e jurídico que culminou no impedimento de Dilma Roussef e seu consequente afastamento da Presidência da República, em maio de 2016.

A partir daí, ocorreu a ruptura nacional que conduziu ao enfraquecimento da democracia brasileira; os sucessivos cortes de direitos sociais que se seguiram permitiram a ampliação das desigualdades sociais. Uma das vertentes dessa ruptura é representada pela Emenda Constitucional 95, de 2016, apelidada de “Emenda da Morte”, por congelar por 20 anos os investimentos em direitos essenciais à vida, como saúde, educação, ciência e tecnologia e segurança.

No final de 2018, com o resultado das eleições, vimos que a grande maioria dos liberais (tanto os que se fizeram de indiferentes ou os que participaram, direta ou indiretamente, da trama retórica[3] que possibilitou, a partir de maio de 2016, o “desmanche da Constituição e das Instituições”[4]), foram varridos do cenário político[5] e os Poderes Legislativo e Judiciário tornaram-se enfraquecidos, diante da figura do misticismo que se tenta impor acima de tudo e de todos.  

Considero importante para este ensaio o resgate da obra de Montesquieu[6], não apenas por tratar-se de um autor clássico das ciências sociais, mas especialmente por verificarmos cada vez mais a atualidade do seu pensamento, ao afirmar que só existe democracia onde há igualdade. Como demonstrou Montesquieu, sociedades desiguais abrem caminhos para a instalação de regimes despóticos e tiranos, que se alimentam do medo e do terror para se afirmarem.

O que se mais observa no mundo, na atualidade, é a desigualdade social decorrente da concentração brutal de riquezas e fontes de recursos.  A falta de igualdade e de oportunidades conduz à desesperança e a uma situação de constante temor.

Em tais situações, a população, tomada de receios em relação ao futuro e paralisada pelo medo, decide entregar seu destino nas mãos de políticos que se apresentam como fortes e propõem a implantação de um estado onde impera o discurso de violência, ódio e repressão, que conduz à tirania.

A tirania é uma forma de governo onde não existe o equilíbrio das forças políticas e sociais, base central do pensamento de Montesquieu. O autor afirma que, para que haja esse equilíbrio, é essencial a manutenção de instituições políticas[7] capazes de garantir a existência de uma sociedade frugal, onde todos possam desfrutar das riquezas produzidas pelo conjunto da sociedade.

O objetivo deste trabalho é analisar o papel de intermediação que deve ser desempenhado pelo Poder Judiciário, a partir da divisão de poderes desenvolvida por Montesquieu, como instrumento capaz de assegurar o equilíbrio de forças políticas e sociais, diante de governos que se apresentam com o rótulo do nacionalismo e forte apelo moralista, os quais, porém, abusam de princípios caros ao liberalismo, doutrina construída a partir da modernidade.

Nos dias atuais, governantes manifestam, sem nenhum receio de desagradar aos cidadãos, a possibilidade de restringir liberdades individuais, como a liberdade de expressão; o direito de livre prática religiosa; a livre circulação de pessoas; o respeito à pluralidade de pensamento, gênero, raça, origem, opção sexual e convicção de ideologia.

Da mesma forma, há governos que se acham legitimados a cortar direitos sociais e deixar de efetivar investimentos em áreas de grande impacto humano, como saúde, educação, previdência e assistência social; que se consideram também com permissão  para desprezar a proteção ao meio ambiente e liberar toda sorte de abusos contra a natureza e até mesmo para “abater” indivíduos de forma sumária e sem o devido processo legal, que constitui uma das primeiras conquistas do liberalismo.

Tais comportamentos, característicos de governos que tentam se impor pela força e truculência física e moral devem ser repelidos e limitados pelo Poder Judiciário, o qual, nas palavras de Kelsen[8], é “uma espécie de contrapeso do poder legislativo e do executivo”.

Nesse encaminhamento, pode-se verificar que, apesar das suas (muitas) omissões recentes e de ter contribuído para a instalação do quadro quase permanente de violação de garantias fundamentais, o Poder Judiciário, representado pelo Supremo Tribunal Federal, ainda detém um papel fundamental de intermediação com as forças políticas e sociais, que urge ser exercitado a fim de restabelecer o necessário equilíbrio de forças, único caminho para impedir o esgarçamento total do tecido social; ademais, o Poder Judiciário não pode fechar os olhos para a possibilidade de disrupção da ordem ora instituída, em consequência da atuação das novas forças emergentes, que não camuflam sua intenção de tornar supérfluas as instituições tais quais as conhecemos agora.

Mais do que nunca, parte expressiva da população clama e o momento político exige que o Supremo Tribunal Federal – ainda que sob ameaças diretas ou veladas – deve agir de imediato e portar-se conforme exige seu papel constitucional: qual seja, o de ser a última fronteira de proteção da democracia, a fim de impedir as ameaças que atentem contra a liberdade, a exemplo do sucedido às vésperas do segundo turno da eleição presidencial de 2018, no Brasil, quando juízes eleitorais ordenaram que a polícia, em cumprimento de mandados de busca e apreensão, invadisse diversos campi universitários, nos quais os corpos docentes e/ou discentes estivessem a manifestar-se contra os perigos da ideologia do fascismo, que tenta mais uma vez tomar o mundo, ao custo de conduzi-lo a um novo holocausto, já em curso com a perseguição a imigrantes e a todos os que pensam de forma diversa.

O mesmo Supremo Tribunal Federal, que, em casos anteriores, deixou uma evidente impressão de politização da justiça, finalmente manifestou sua voz, ainda que de forma tímida, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental número 584, proposta pela Procuradoria Geral da República.

Segundo a ministra relatora, Carmen Lúcia, que teve a sua decisão liminar referendada pelo Tribunal, “a única força legitimada a invadir uma universidade é a das ideias livres e plurais. (...) Qualquer outra que ali ingresse sem causa jurídica válida é tirana, e tirania é o exato contrário da democracia”.

Sem dúvida, a resposta do Supremo Tribunal Federal veio em boa hora e deverá ser intensificada no julgamento de outros casos pendentes de julgamento naquele Tribunal (como a questão da ampla garantia da “presunção de inocência” para todos os cidadãos), de forma a se restabelecer o equilíbrio de forças e impedir abusos contra o sistema jurídico liberal, que  tem na preservação ampla das liberdade individuais e coletivas, e também na proteção dos direitos sociais,  a marca fundamental do período histórico, a ser assegurado por um Poder Judiciário que verdadeiramente exerça o papel de intermediário entre os demais poderes políticos e a sociedade, a fim de manter não apenas o equilíbrio de forças, mas a própria democracia.

 

[1] “Nova Constituinte, somente em caso de ruptura nacional”, afirmou J. Bernardo Cabral, em seminário sobre os 30 anos da Constituição de 1998, no Instituto dos Advogados Brasileiros, em 08/11/2018.

[2] Estamos nos referindo em particular aos Poderes Legislativo e Judiciário.

[3] “Pedalada fiscal”.

[4] Folena de Oliveira, Jorge Rubem. O desmanche da Constituição e das instituições, Revista Consultor Jurídico, 13 de mar. 2018. Disponível em https://www.conjur.com.br/2018-mar-13/jorge-folena-desmanche-constituicao-instituicoes-politicas. Acesso: 10 de nov. 2018.

[5] A referência é dirigida a parlamentares de tradicionais partidos políticos, como as siglas do velho MDB, PSDB, DEM (antes PFL) e PP, que não renovaram seus mandatos e foram vencidos por candidatos de “novas” siglas, antes inexistentes na política brasileira.

[6] MONTESQUIEU. Do espírito das leis. São Paulo: Editora Abril, Os Pensadores, 1973.

[7] Governo, Parlamento e Judiciário.

[8] KELSEN, H. Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 247.

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