A guerra fiscal entre os estados brasileiros, gerada pela competitividade em concessões de benefícios tributários, como a renúncia de ganhos com o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), foi tema do webinar Prerrogativas e limites da fiscalização, realizado pela Comissão de Direito Financeiro e Tributário do IAB. O evento foi aberto pelo presidente nacional do Instituto, Sydney Sanches, que destacou a iniciativa da comissão organizadora em promover uma "profícua discussão sobre temas tão importantes no setor da arrecadação”. Impasses legais dentro da atividade tributária, fraudes fiscais e benefícios sociais também foram tópicos abordados no evento.
O primeiro painel de debate, intitulado ICMS e importação por encomenda, por conta e ordem e entre estabelecimentos da mesma empresa, foi mediado pelo presidente da Comissão de Direito Financeiro e Tributário, Adilson Rodrigues Pires, e contou com a participação do presidente do Conselho de Contribuintes do Estado do Rio de Janeiro, Marcos dos Santos Ferreira, e da mestre em Direito Tributário pela Universidade Cândido Mendes (Ucam) Ilana Benjó. Na exposição sobre o caráter amplo dos tipos de importação, Marcos Ferreira demonstrou que um dos grandes impasses fiscais sobre o trânsito de mercadorias é a responsabilidade pelo imposto sobre o produto. “É um tema riquíssimo para entender qual é o objetivo final da importação: a mercadoria iniciar o seu ciclo econômico ou a industrialização?”, questionou o palestrante convidado.
A questão foi tratada no tema 520 em discussão no Supremo Tribunal Federal (STF), que decidiu inicialmente que o recolhimento do ICMS deve ser feito pelo estado da Federação em que o processo de industrialização é realizado. De acordo com Ferreira, a apreciação do tema não dá conta da complexidade de situações ocasionadas pelos diferentes tipos de importação. “Apesar da decisão do STF afastar dúvidas com relação ao sujeito ativo do ICMS em diversas hipóteses, alguns casos, como no das importações e a transferência posterior para outras filiais do estabelecimento importador, ainda necessitam da análise da documentação que amparou a operação de importação das mercadorias, assim com a sua finalidade”, explicou.
Em contrapartida, Ilana Benjó disse que a decisão do Supremo abriu um precedente de dúvida, inaugurando uma possível nova modalidade de importação. “Toda vez que há uma transferência imediata, principalmente quando a mercadoria vem de um estado com benefício fiscal, isso torna o sujeito ativo do ICMS o estado de destino? No julgamento original do STF, parecia que sim”. Segundo a advogada, em 2021, o tribunal assumiu a contradição, depois dos embargos gerados pela decisão, e eliminou a possibilidade de uma nova regra de importação ser gerada pela interpretação da resolução. “Tudo é muito recente, os primeiros recursos estão chegando ao Conselho dos Contribuintes. Agora, começarão a construir uma jurisprudência em observância aos dois embargos, onde o segundo desfaz a determinação do primeiro”, explicou Benjó. A jurista também ressaltou que o conselho, como órgão fiscalizador, atua de forma relevante enquanto poder limitador da fiscalização tributária.
Fraude fiscal – O evento também abriu espaço para a discussão do papel do Fisco na organização administrativa tributária. O Impedimento e cancelamento de inscrição estadual pelo Fisco e efeitos práticos foi tema da segunda mesa de debate, mediada pela mestre em Direito pela Cornell Law School Mariana Navega. O assunto foi abordado pela conselheira do Conselho de Contribuintes do Estado do Rio de Janeiro Fábia Trope e pelo professor de Direito Tributário da Universidade Unigranrio Alexandre Ayres. Para apresentar o ponto de vista do Estado no combate à fraude, Fábia Trope destacou que “uma administração organizada e eficiente é um elemento essencial para um sistema tributário justo”. A advogada afirmou ainda que a sonegação fiscal implica na livre concorrência, na medida em que cria distorções de mercado. Por esse motivo, segundo ela, o Fisco cria mecanismos para combater a fraude fiscal, sendo um deles a inabilitação da inscrição do contribuinte. “As consequências são a proibição do exercício das atividades e a impossibilidade de emitir documentos fiscais. Por serem medidas extremas, deve-se assegurar o direito de defesa”, esclareceu.
“O impedimento ocorre quando a empresa se mostra inativa, comprovadamente através de diligência fiscal ou presumida pela ausência de obrigações acessórias”, disse Trope. A advogada afirmou que as malhas atuais são responsáveis por atuar na fiscalização de sonegação de maneira mais eficiente em relação ao passado. Por outro lado, segundo Alexandre Ayres, as medidas de verificação podem desconsiderar estruturas atuais de trabalho que, por exemplo, ausentam as atividades da matriz física da empresa em função do regime de trabalho home office. “Em casos como esse, o contribuinte só vai saber da sua situação quando tentar emitir documentos e não conseguir”, afirmou ele.
Ayres sugere que os mecanismos de acompanhamento sejam aprimorados para garantir o sucesso da arrecadação tributária, que é fator relevante para a manutenção da máquina pública. Como consequência, o aprimoramento continuaria combatendo a fraude sem prejudicar o contribuinte. “Tributação é obrigação pecuniária compulsória, tem que pagar. A obrigação principal é o recolhimento e as obrigações acessórias são todas as outras que ajudam a fiscalização a maximizar a arrecadação”, justificou. Nesse sentido, Adilson Pires ponderou que, mesmo em posições conflitantes, deve prevalecer entre Fisco e contribuinte um sistema de interação saudável. “O objetivo é um só: agir de uma forma lícita e legal, buscando sempre o bem da Nação, porque a arrecadação é um bem público revertido para o contribuinte”.
Competitividade – Na última mesa do dia, os debatedores discutiram o ICMS e a competitividade no Estado do Rio de Janeiro, mediados pelo vice-presidente da Comissão de Direito Financeiro e Tributário do IAB, Márcio Ávila. O estudo de caso no estado foi desenvolvido pela presidente do Conselho Fiscal da Agência Estadual de Fomento (AgeRio), Priscila Sakalem, e pelo diretor do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT), Rodrigo Maito. Para discutir a relação entre a tributação e a concorrência, pensando na relação entre os estados, Maito ressaltou que é preciso entender que os tributos afetam diretamente a alocação de recursos. “O tributo não é neutro. O que nós podemos buscar é fazer com que os tributos não afetem o equilíbrio entre os concorrentes no mercado”.
O impacto econômico da tributação é tratado pelo Direito Concorrencial e pelo Direito Tributário, segundo o advogado. “Quando falamos do exercício da competência tributária, existem vários princípios que devem ser observados como, por exemplo, o da livre concorrência e o da livre iniciativa, que têm pertinência no exercício da atividade econômica de uma forma geral e na criação do mercado. O Direito dá substrato para que haja um mercado organizado, como a gente conhece”. Maito afirmou ainda que, nesse contexto, as ações que visem a elaborar políticas públicas “devem guardar coerência com os princípios constitucionais tributários e da ordem econômica”.
No âmbito do poder público, Priscila Sakalem demonstrou como os benefícios fiscais gerados através do ICMS são responsáveis por garantir maior competitividade nos governos estaduais. De acordo com a mestranda em tributação, a concessão generalizada desse incentivo gerou uma guerra fiscal entre os estados do País, que utilizam a prerrogativa como um atrativo de investimentos. Sakalem apontou que, no caso do Rio de Janeiro, a renúncia fiscal alcançou o valor expressivo de R$ 56 bilhões entre os anos de 2007 e 2016.
Os impactos da política tributária do Rio foram percebidos na geração de empregos e na expansão de parques industriais em municípios, mas também foram associados à crise financeira sentida no estado a partir de 2016. Para Sakalem, “não basta tratar só a política pública e o benefício fiscal; é necessário olhar para o emprego desse recurso e para como os gestores públicos estão empregando esse dinheiro”. Ela ressaltou que o desenvolvimento pensado para as futuras gerações deve ser uma prioridade para construir um ordenamento mais justo.