Dessa forma, o IAB se posiciona em consonância com a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPE/RJ), que requereu, em 2018, o cancelamento ou ao menos a revisão da Súmula. A Casa de Montezuma foi admitida como amicus curiae no procedimento administrativo aberto pela DPE/RJ, a fim de apresentar uma possível sustentação oral perante o órgão Especial do TJRJ. Os pareceres do Instituto, elaborados a partir da indicação da consócia Fernanda Prates Fraga, foram apreciados pelas Comissões de Direito Penal, com relatoria de Denis Sampaio, e de Criminologia, cujo relator foi Caio Badaró Massena.
A utilização da presunção de veracidade de depoimentos policiais em processos criminais, segundo Badaró, vai de encontro ao direito fundamental à presunção de inocência. Ele pontua que esse direito é ponto de partida do processo criminal, que deve funcionar como um mecanismo de apuração da culpa, e não da inocência do imputado: “Isso leva a que o ônus da prova, no tocante à imputação, recaia exclusivamente sobre a acusação; em outras palavras, cabe à acusação provar a responsabilidade penal do imputado, e não a este provar sua inocência. Portanto, válida ou não no âmbito administrativo, a tese não se sustenta juridicamente no contexto do processo penal”.
Condenações baseadas nas palavras exclusivas de policiais, na visão de Denis Sampaio, também representam violação dos princípios constitucionais de equidade e isonomia. “Há uma diretriz nefasta pela forma de valoração da prova testemunhal através da aplicação da Súmula 70 do TJRJ. Há uma hiper valoração das palavras policiais e redução do valor probatório das testemunhas defensivas ou da autodefesa do acusado. No momento valorativo de todo o resultado probatório, há verdadeira discrepância na balança”, destaca o relator no texto.
Marcio Barandier
O parecer da Comissão de Direito Penal, que foi apresentado ao plenário pelo presidente do grupo, Marcio Barandier, também cita que pesquisas realizadas pela DPE/RJ permitem inferir que a presunção de veracidade da palavra dos agentes de segurança não é afastada nem em casos em que a pessoa acusada foi submetida a tortura ou maus tratos por parte dos próprios agentes. “O estudo, lançado em 2021, apontou que em 88% dos casos em que há denúncia de tortura formulada pelo réu, a despeito de haver marcas aparentes de lesões em 46,3% das hipóteses, ocorre a condenação. Registre-se que 53% desses casos se tratavam de imputações de delitos previstos na Lei de Drogas e 46% das sentenças mencionam expressamente a Súmula 70 do TJRJ como fundamento para a condenação”, diz o texto.
Em outra perspectiva de análise, Caio Badaró também destaca que a Súmula caminha na contramão das orientações científicas da psicologia do testemunho e contribui para a condenação de inocentes, já que desconsidera, por exemplo, a subjetividade da memória. “Se uma pessoa testemunhar um mesmo delito em reiteradas ocasiões, tenderá a recordar mais detalhes do que quando o evento se apresenta de forma isolada. Nesses casos, entretanto, a testemunha tende a produzir mais erros de comissão, provocados pela interferência entre as distintas ocasiões com que teve contato. Trata-se da contaminação da memória pelos chamados efeitos de scripts de rotina”, defendeu o parecerista.
De acordo com Marcio Barandier, o entendimento em debate é adotado em outros tribunais do Brasil, mas no Rio de Janeiro é bastante recorrente por estar respaldado pela Súmula. “Essa prática não é compatível com a nossa Constituição, com a doutrina penal e com o princípio da dignidade humana”, criticou o advogado. Fernanda Prates também concordou com a visão dos relatores e ressaltou que o IAB e as instituições do Direito devem se posicionar contra a medida do TJRJ. “Essa é uma Súmula que vem causando enormes prejuízos não só às pessoas, mas também à qualidade do nosso sistema penal”, afirmou a indicante.