Não, propriamente, a escravidão se distingue como uma marca referencial do regime de trabalho do tempo histórico que precede a sociedade medieval de senhores apoiados nas relações de servidão. Muito ao contrário, se ela foi uma marca das relações produtivas na Babilônia, no Egito, na Pérsia e dos modelares regimes da Grécia clássica, quando, Platão, um dos seus mais expoentes pensadores, experimentou a condição de escravo, quem sabe não propriamente como experiência vivencial, e de Roma, onde, em grande parte do Império, grassou a rebelião liberticida do escravo Spartacus, que influenciou, na Alemanha de 1918/1919, o movimento político de esquerda espartacista, de líderes radicais. A escravidão, em feições diferenciadas, permeou, na história moderna, a expansão colonial do capitalismo comercial no novo mundo: as Américas.
Fosse no norte das Américas, fosse na América central, fosse no Sulamérica, aqui se instalaram cerca de 10 milhões de negros, muito especialmente na Bahia, aprisionados em guerras tribais no interior e no oeste da África, negociados e vendidos clandestinamente como trabalhadores braçais, sem qualquer tipo de recompensa, exceto aquela que lhes permitissem continuar trabalhando, inclusive as mulheres no trabalho doméstico.
No Brasil desembarcaram cerca de 4 milhões de negros trabalhadores que se dirigiram diretamente para a monocultura da cana de açúcar, no Nordeste, e, posteriormente, para a monocultura do café, no Sudeste do Brasil, especialmente São Paulo. Em etapas intermediárias e subsequentes foram alocados na mineração do ouro e mesmo na cata de diamantes.
A literatura brasileira desde seus primórdios foi enriquecida com um sem número de estórias sobre o sofrimento dos negros trabalhadores, vítimas também dos ardis da tortura e de fugas espetaculares para a construção de quilombos em terras longínquas ou mesmo em áreas antigamente periféricas e hoje propriamente urbanas, onde se revelaram heróis da raça como fora Zumbi. Ocorre, no entanto, que pouco a economia tem estudado a contribuição do trabalho escravo para a formação do capital empresarial brasileiro.
A nós parece, também, muito importante observar, o processo lento e gradual da emancipação, não apenas da mão de obra escrava, conduzida pelo Império, originariamente marcada nas iniciativas comerciais, como foi a Lei Feijó, em 1835, que proibia o tráfico e considerava livre aqueles escravizados que viessem a entrar no Brasil, lei, aliás, que precedeu o Beel Aberdeen, editado pelos ingleses proibindo o tráfego no Atlântico; a Lei Euzébio de Queirós, de 1850, que proibia o tráfico de escravos e, sucessivamente, as leis da pessoa humana como a Lei do Ventre Livre, de 1871, e a Lei dos Sexagenánarios, processos que conduziram à Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, assinada pela princesa regente, na ausência do imperador,que, abolindo a escravidão, no curto prazo, provocou o fim da monarquia no Brasil.
Finalmente, não propriamente para estarrecer a população libertada, ela não teve qualquer benefício sócio-econômico inclusivo, nem mesmo a ocupação continuada das senzalas, o que significa que o Império não reconheceu o débito acumulado com a população negra,o que, também não ocupou as pautas da República, até a Constituição de 1988. As aberturas constitucionais, nesse sentido, têm viabilizado políticas públicas inclusivas para a população negra, o que se não significa uma solução definitiva, que tenha também efeitos urbanos, o encaminhamento de um débito, não propriamente contabilizado, mas que traduz o atavismo de nossas políticas de distribuição de renda, inclusive com os países da costa africana.
O Brasil, todavia, é o país dos contrastes. A Constituição Imperial não era racista, era censitária, onde aqueles que tivessem renda suficiente poderiam ser votantes ou serem votados para a Câmara dos Deputados ou para o Senado Imperial. Foi no quadro dessas exceções, que foi eleito, dentre outros que advieram, deputado imperial o negro Francisco Gê de Acayaba Montezuma, médico baiano e advogado que fez o primeiro projeto de abolição da escravatura no Brasil e fundou, em 1843, e por muitos anos presidiu, o Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), hoje presidido pela advogada trabalhista Rita Cortez, “casa mater” da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
* Professor titular emérito da Unirio e diretor cultural do IAB
Fonte: http://www.jb.com.br/artigo/noticias/2018/05/13/a-lei-aurea-130-anos-depois/