Segundo o jurista, essa estrutura coloca todos os seus participantes à margem do Estado. “Isso faz com que o Estado perca uma grande parte do monopólio do poder punitivo e também o monopólio da arrecadação fiscal. Duas funções naturalmente essenciais a ele e que ficam na mão de grupos de polícia autonomizada, criminalidade de mercado, justiceiros e brigadas”, disse Zaffaroni. Ele explicou que, como tentativa de preencher essa lacuna, as políticas estatais tendem a transformar as forças armadas em forças policiais, mesmo que não haja treinamento para isso. “As forças armadas acabam cometendo erros e correm o risco de ter o mesmo fim das polícias. Os erros fazem com que a população perca o respeito pelas forças armadas e, no final, temos um Estado degradado”, completou.
Também palestraram o escritor e ativista indígena Edson Kayapó, o presidente do Instituto de Criminologia e Política Criminal, Juarez Cirino dos Santos, e a cientista política e escritora Vera Malaguti Batista. A aula ainda contou com a presença da diretora da Esiab, Leila Pose Sanches, da presidente e da 1ª vice-presidente da Comissão de Criminologia do IAB, Marcia Dinis e Roberta Duboc Pedrinha, respectivamente, além de outros membros do Instituto e alunos do curso.
Na abertura do encontro, Leila Pose agradeceu aos coordenadores do curso e deu as boas-vindas aos alunos da Esiab: “Eles estão em uma escola que, apesar de jovem, é bem sucedida pela dedicação de seus professores”. Roberta Pedrinha destacou que o objetivo do curso é mergulhar em estudos críticos sobre as políticas criminais repressivas, para que seja possível contribuir para a criação de responsabilidade social e política. “Esse curso busca qualificar epistemologicamente todo o nosso debate acerca da questão criminal. Nós buscamos, através da construção de uma formação teórica e crítica, uma práxis que seja efetivamente comprometida com os valores do Estado Democrático”, afirmou a advogada.
Juarez Cirino dos Santos ressaltou que o encarceramento em massa promovido pelo punitivismo está fundamentado em políticas de Estado desiguais. Citando a ausência de direitos trabalhistas, ele lembrou também que as periferias demonstram a realidade de vulnerabilidade social do Brasil. “A nova direita exige um Estado autoritário com uma política que não controla a economia para produzir libertação social, mas, ao contrário, que faz um controle para liberar a economia”, disse o jurista.
Ao abordar uma perspectiva histórica da Criminologia, Vera Malaguti Batista explicou que esse campo de estudo surgiu na Europa durante o século XIX. No entanto, ele ganha nova força após os anos 1990 com a proliferação de políticas de segurança pública. “A Criminologia crítica se revigora a partir de uma escuta e de um desejo de resistência ao Estado de polícia que começava a se reconfigurar. Se o campo político da lei e da ordem se preparou para o combate, é curioso observar como a esquerda se revestiu de argumentos realistas e punitivos na busca dos modelos de boas polícias e de boas prisões” apontou a escritora.
Segundo a palestrante, no contexto brasileiro, a guerra contra as drogas foi um vetor fundamental de um processo denominado por ela como “a constituição de um sujeito matável”, onde há a naturalização da morte: “Para nós, do Rio de Janeiro, o formato da guerra como política é uma realidade concreta e palpável. No Brasil, toda a retórica bélica se apresenta na forma de diferentes combates contra o crime e contra a corrupção. Esse léxico pontua e funda a discursividade dos magistrados e promotores, além da transformação de todos os níveis de polícia”.
Edson Kayapó sublinhou que o campo acadêmico precisa expandir o debate e pesquisar o processo histórico que envolve a escravização dos povos indígenas. O ativista lembrou que o senso comum reproduz a falácia de que os originários eram preguiçosos e, por isso, o colonizador teria desenvolvido a colônia a partir do trabalho forçado dos africanos. “Esse discurso historiográfico oficial tem falhas, porque existe uma série de pesquisas que nos dizem que os povos indígenas continuaram sendo escravos durante todo o tempo colonial”, explicou. Citando o ciclo da borracha na região Norte, séculos depois, Kayapó afirmou que os indígenas foram sistematicamente explorados: “Foram ações muito violentas que ocorreram ‘ontem’, muito depois da Lei Áurea. Essa violência se dá desde o século XVI e desumaniza os povos indígenas na sociedade brasileira”.